Thiago Bruno Santos da Silva (**)
Este trabalho vem no curso de algumas coisas que venho pensando e trabalhando sobre o campo da atenção psicossocial, que é sua relação com a ciência. Se nem sempre nos parece obvio que a eficácia da Reforma psiquiátrica brasileira se expressa na melhora nítida e demonstrável na qualidade de vida da população local a qual tem responsabilidade territorial por atender, uma vez mais é o caso de dizer e ir um pouco além: Em que e aonde ela está autorizada desde seu lugar a dizer o certo do errado no campo ampliado dos cuidados e dos debates em saúde? Penso que seja possível partilhar com vocês que é em seu caráter cientifico que ela extrai sua consequente participação nessa matéria. Se é verdade que Reforma psiquiátrica e o campo da atenção psicossocial são uma subversão e reordenamento político no laço social para o tratamento historicamente reservado às loucuras via isolamento e segregação, igualmente verdade são os princípios metodológicos e científicos construídos que dão sustentação real a possibilidade de tal subversão.
Gostaria para esse trabalho de trazer uma relação entre atenção psicossocial e uma tendência por vezes interna das próprias equipes a se distanciar do campo clínico, científico e do debate ampliado, estes que justamente sustentam sua práxis. Fui membro de uma equipe que se via lançada no caos em função de não ter supervisão clínico-institucional diante do atendimento a casos complexos. Nesse estado de coisas em um CAPS encontram-se as condições concretas para sua demolição a partir de dentro por sua distância da clínica, da ciência e seu debate. Isso caminha para o caos e um desmonte interno, por uma oposição que vai de encontro ao desmonte externo que o SUS e a Reforma Psiquiátrica sofrem desde o governo Temer. Sem supervisão um CAPS pode ser um caos ou se burocratizar em protocolos de atendimento infinitos.
(*) trabalho apresentado na VIII semana da Psicologia e I Encontro da Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT na mesa Psicanálise e saúde mental no dia 26 de Julho de 2019
(**) psicanalista – membro do Laço analítico/ Escola de psicanálise sub-sede Cuiabá. Professor da Universidade de Cuiabá – UNIC, membro da equipe Psicanálise na rua em Cuiabá
Para tal empreitada trago uma breve história recente da ciência contemporânea e suas consequências políticas e subjetivas em alguns países do mundo. Se trata de uma curiosa hipótese em um estudo envolvendo a causalidade do autismo e algumas repercussões no mundo.
Foi em 1998, que um médico britânico Andrew Wakefiled popularizou o que ficou conhecido como o mito da ligação entre autismo e vacinas. O então médico e sua equipe na pesquisa trabalharam com uma curiosa hipótese de um vínculo causal entre a vacina que atua como proteção contra sarampo, rubéola e caxumba (a MMR) à graves problemas intestinais, estes por sua vez levariam a uma inflamação no cérebro, causando com isso inclusive o autismo.
Essa vacina está no grupo de aplicação do vírus vivo atenuado, conhecida como tríplice viral é aquela de aplicação cotidiana aqui no Brasil e no mundo, em duas doses a crianças de até os 12 meses, seguida da segunda dose aos 15 meses e revacinada a vida escolar dos 4 a 6 anos.
O ano como disse era 1998, a pesquisa discorria sobre o caso de 12 crianças, descritos como apresentando graves problemas intestinais e comportamentos autistas, todas com vestígios de sarampo publicado na renomada revista Lancet. 11 delas haviam sido vacinadas com a MMR, e eles chegam a uma peculiar vinculação prenhe de consequências tão amplas no campo social na mesma proporção de sua aproximação do falso. Encontrei registros de que o médico afirmava se tratar apenas de uma hipótese, mas a consequência psicossocial imediata foi uma queda dos índices de vacinação na Inglaterra e em outros países na Europa.
No primeiro trimestre de 2017 foi registrado uma epidemia de sarampo em função da queda da imunização via MMR, a população recuava da aplicação de vacinas. Se em 2016 os registros localizaram mais de 5000 pessoas infectadas com sarampo, o número em 2017 foi para mais de 21000, portanto um aumento de mais 400% divulgados pela OMS em 20 de fevereiro de 2018.
Poucos anos depois da popularização do estudo, nos Estados Unidos uma hipótese análoga vinculava a causação do autismo a vacinas não com o MMR, mas com o timerosal, este consiste de uma dose mínimo de 25 gramas de mercúrio por 0,5 ml, este atua como elemento protetor contra fungos e bactérias que compõe algumas vacinas, principalmente aquelas que exigem mais de uma dose. A Fiocruz aponta que a OMS defende o uso do componente nas vacinas apoiada em pesquisas que mostram claramente que não há coisa alguma até então que vincule a aplicação da pequena dose mercúrio no corpo pós vacinação a algum dano à saúde. O mercúrio, portanto, não se acumula em repetidas injeções e é expelido rapidamente pelo organismo.
Na Dinamarca o timerosal já havia sido retirado das vacinas desde 1992 e o autismo não parava de aumentar em sua população, reforçada por outra análise dessa vez na Califórnia aonde o timerosal foi retirado das vacinas nos anos 2000 e o autismo também aumentou, contrastando frontalmente com a curiosa hipótese, mas sendo ineficaz quanto a suas consequências sanitárias danosas para inúmeras populações que passaram a adoecer de uma doença facilmente combatida.
Esses estudos, dados e múltiplas pesquisas em torno do autismo e suas supostas causalidades tem sido objeto de tratamento de pesquisa de inúmeros campos do saber que circunscrevem o contexto contemporâneo que decidiu tomar o autismo como um grande mal a ser combatido, para além do enigma de sua causa. Acompanhemos e tentemos ler com aquele que lê o mal a ser pesquisado aí.
Um signo é aquilo que representa algo para alguém, como Lacan nos ensina. Se atentarmos a distância fumaça saindo de algum ponto, nada nos informa precisamente se se trata de um incêndio, um churrasco ou um evento natural ainda não descoberto por nós. Nada senão o signo do que entendemos acontecer ali antes mesmo de saber do que se trata é dado a nossa apreensão imediata, e reagir bem ou mal diante desse entendimento sobre a realidade que é o signo é uma de suas consequências esperadas.
Qual os signos que estes estudiosos enxergam quando olham para tais dados que encontram? Faço a suposição de que é o próprio autismo enquanto o signo da catástrofe anunciada para a vida do sujeito e sua comunidade. O porque convém interrogar agora.
Afinal, como esse que é o propositor da pesquisa encontra como ponto axial de sua leitura um signo dessa ordem? Lembrando que é este (o signo) que o informa de sua hipótese a ser verificada, e não o contrário. Logo, não há nada a se verificar no campo real aonde o tratamento de um sujeito autista acontece, como num CAPS, CAPSi, consultórios de inúmeros pediatras, fonoaudiologistas, terapeutas ocupacionais, psicanalistas e outros. Este (aonde acontece o tratamento real) é o campo que é esvaziado de importância na investigação clínica e científica de pesquisas como essa. Sobre o sujeito se aplica um signo que paire a cabeça do pesquisador, pois se entende que do sujeito ou com ele coisa alguma pode ser extraída que o valha para a ciência. Eis uma das razões que fazem com que a Reforma justamente por ser rigorosamente cientifica alvo de um desmonte que atinge o SUS, o SUAS, a educação pública e por princípio, a própria ciência. Desmonte que lhe antecede e continuará ao que tudo indica enquanto a ordem do capital for vigente.
Afinal, o que orienta tenazmente uma hipótese como essa que vincula autismo as múltiplas coisas que caiem na cabeça de qualquer um senão somente o lugar preciso em que está a cabeça desse um qualquer? Qual o fio lógico que tem permitido um ordenamento tão peculiar as pesquisas quando se trata de autismo?
Admito aqui a justa e necessária intervenção de algumas condições epistemológicas para balizar o campo cientifico ao qual tal pesquisa se refuta a apresentar, nos termos de Karl Popper (1974):
Uma ousadia de prever, associado à disposição de buscar testes e refutações, é o que distingue a ciência “empírica” da não ciência e, em especial, dos mitos pré-científicos e da metafísica.
(pg. 121)
Por referência ao campo epistemológico e não sem ele, temos condições de dizer que não é ruim ou impróprio partir de uma hipótese como a desse grupo de pesquisadores desse médico britânico mesmo com toda arbitrariedade e abstração que lhe é peculiar, por oposição a um tratamento real de sujeitos autistas em CAPS, CAPSis e consultórios de psicanálise. Toda pesquisa parte de uma suposição, uma conjectura e até aí estamos no solo comum a toda ciência, a questão nova que Popper traz é que uma conjectura só é arrojada se ela “assume grande risco em ser falsa” (pg. 118), recusando essa dimensão sequer poderíamos dizer que é de ciência que se trata.
Popper nos conduz a Copérnico para dizer que mesmo não propondo experimentação alguma que demonstrasse suas previsões, a teoria heliocêntrica do astrônomo era cientifica pois ousava realizar previsões que se expõem a refutação, e, portanto, permitem inaugurar um campo que não se encerra com a falsa postulação de um dogma incontestável. Ciência é um campo ampliado de longas e diversas conjecturas que se dialogam e não se poupam de refutação via um confronto crítico por sua relação com a verdade.
A ousadia do tipo especial que é a do cientista é nas palavras de Popper:
Trata-se da ousadia de uma conjectura que corre um risco real – o risco de ser testada e refutada, o risco de entrar em conflito com a realidade (pg. 121)
Pois bem, com Popper chegamos a um melhor discernimento mais ou menos partilhado de que vincular como hipótese vacina, doença gastrointestinal e autismo é das menos arrojadas possíveis, não só distantes como avessas ao campo científico por seu apego a uma abstração generalizante distante do concreto que é o tratamento real de um autista em CAPS por exemplo. Temos que essa hipótese se refugia de refutação pois se abstrai da realidade com fins de evitar o conflito, eis, portanto em que uma pesquisa como essa nada mais é que um sintoma. Este é o primeiro ponto.
O segundo ponto exigirá conhecermos o fim da história desse estudo. Foi em 2004 que veio a público que antes da publicação em 1998 dos estudos vinculando autismo a vacinação, o médico pesquisador havia realizado um pedido para patentear uma vacina contra sarampo concorrente a MMR. E as coisas foram adiante até onde alcancei em minha pesquisa sobre o assunto, descobriu-se que o médico recebia pagamentos de advogados em processos por compensação de danos provocados por vacinas, e outro fato, um outro médico auxiliar na pesquisa de 98 veio por se manifestar que as 12 crianças testadas não tinham vestígios algum de sarampo, fato ignorado propositalmente pelo médico propositor da pesquisa.
A revista Lancet que publicou o estudo em 1998 se retratou publicamente alegando falsa aquela pesquisa. O Conselho Geral de Medicina do Reino Unido julgou o médico “inapto para o exercício da profissão”, entendendo-o como “irresponsável”, “antiético” e “enganoso”. Com Popper acrescentaríamos que isso se trata de uma falsa ciência ou não ciência.
Foi procurando o terreno que ampara a ousadia de uma hipótese tão pouco arrojada e cientifica quanto essa que nos encontramos com uma de suas fontes mais ordinárias na disputa por intervenções na ciência que é a ordem do capital. Esse fato ainda nos surpreende? Se na dissonância entre o concreto e o abstrato nas pesquisas estamos suficientemente advertidos e há mecanismos que se empenhem em seu filtro público, ético e metodológico, extraímos o que faz do capitalismo o verdadeiro e único problema real para a ciência aqui. Pesquisas orientadas para o lucro.
O outro ponto dessa história é (o que na falta de um nome mais apropriado chamarei de) a construção de uma fobia social que vem responder prontamente para orientação da eleição como objeto fóbico o próprio autismo. Como analista de autistas há alguns anos, venho recolhendo o tortuoso e difícil percurso que familiares (principalmente mães de autistas) vem fazendo após a comunicação do diagnóstico na infância.
O percurso é quase típico, a criança inicia a fala e em determinado momento interrompe essa atividade. A escola, o pedagogo, o fono, o pediatra com ou sem tato algum diz do autismo aos pais. Estes entram em pânico e com muita propriedade adentram uma pesquisa interminável que dê um amparo a sua angústia. Esse geralmente é um momento dos mais dolorosos pois não há pai ou mãe que não pense ao menos uma vez que esse significante autismo é o signo de toda sorte de catástrofes possíveis inimagináveis que irão assolar suas vidas e de sua filha ou filho. É preciso tempo na análise de seus filhos e filhas, ou nas suas para que os mesmos verifiquem que a vida segue e não existe relação alguma entre ser autista e levar uma vida miserável. A vida sofre seus rumos trilhando um percurso novo que inclui as particularidades que forem aparecendo por essa condição subjetiva peculiar chamada autista e refinando assim o laço social que segregava a população autista dentro de casa ou nos manicômios.
Em termos simples, um sujeito autista não é sinônimo de uma criatura abominável, auto ou heterodestrutiva, ausente de laços presa num mundo interior com cérebro danificado que será hiperdependente nas chamadas atividades da vida diária. O autismo só é fóbico para quem faz dessa condição subjetiva razão de seus temores. E me parece importante dizer que não é orientado para a fomentação dessa fobia social que se pode conduzir as pesquisas sem que intervenham nelas interesses outros que não os da ciência. Em resumo, suspeita é toda pesquisa que se empenha na promoção de uma calamidade pública com hipóteses falsamente cientificas tanto mais se apoia nelas com fins outros. De modo que ousaria prever (no sentido de Popper) que se é nisso que algumas pesquisas se apoiam seus fins já são outros uma vez que não científicos, portanto poucas considerações deveriam merecer mais do que tem recebido senão para demonstrar sua impropriedade.
Os manuais de psiquiatria que se querem a-teóricos CID e DSM, tem sua responsabilidade pela pulverização de quadros clínicos agrupados sobre o nome de transtornos sem as distinções precisas da boa psiquiatria clássica, numa tendência rumo a uma psiquiatria exclusivamente medicalizante do comportamento avessa aos princípios metodológicos que se dispõem a pensar um tratamento para o sujeito do alienista Philippe Pinnel, fundador do campo psiquiátrico.
Final do século XIX e início do século XX causou em alguns (Freud foi o mais consequente deles) um mistério e curiosidade sem igual ao se descobrir que a hipnose podia tanto produzir quanto retirar os sintomas histéricos, tal como um fato que surpreendeu a muitos em minha equipe do CAPS, quando um paciente autista que nunca falava após considerável tempo de tratamento demonstra que era capazes sim de falar numa assembleia geral em que se decidia a sobremesa da oficina de culinária, mas senão falava todo esse tempo a razão era outra que não tão simplesmente demonstrável através de uma fraca e abstrata hipótese que vincula vacina a autismo, e outras mais atuais que reduzem o sujeito há um desarranjo cerebral, social, nutricional ou neuroquímico. Para isso e é a psicanálise que nos conduz aqui, o autismo tomado como uma posição subjetiva que assim como um sujeito histérico se defende de algo que lhe é extremamente desagradável, é algo que se revela como pertinente e de interesse a ciência, não? Tanto mais a interessa quando verificamos que efeitos como esse surgem de um tratamento dos mais cotidianos e concretos da clínica psicanalítica em consultório ou psicossocial num CAPS a esses sujeitos. Que tem encontrado como efeito em sua pesquisa nos tratamentos, possibilitar ao sujeito ceder um pouco de seu jeito de se defender em sua posição e a rearranjar-se, reposionar-se em seu modo peculiar de fazer laço, que aparecem e podem ser expostos aqui em momentos surpreendentes a uma equipe de CAPS como esse de enunciar uma fala no lugar do silêncio de sempre, manifestando seu voto por um bolo de coco. Demonstrando que o autismo pode ser sim mais que um diagnóstico e menos que um transtorno.
Se a Reforma psiquiátrica no Brasil sobreviver é o ponto capital atual de nossa preocupação frente aos retrocessos neoliberais, que não se esqueça no caminho que uma das condições para sua sobrevivência é ser rigorosamente cientifica quando tudo a incentiva a deixar de ser. Se opondo ao desmonte interno, assumindo a parte que lhe cabe na aliança que por vezes faz ao desmonte mais amplo e geral. Penso que este é verdadeiramente seu ponto nodal e estratégico.
Obrigado
Referência:
POPPER,Karl. O problema da demarcação (1974). (Org.) MILLER, David. In: Textos escolhidos. Ed. PUC-Rio Contraponto, 2010
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