Algumas consequências psicossociais da indistinção entre o que é ciência e o que não é (*)

alquimia2-752x400Thiago Bruno Santos da Silva (**)

 

Este trabalho vem no curso de algumas coisas que venho pensando e trabalhando sobre o campo da atenção psicossocial, que é sua relação com a ciência. Se nem sempre nos parece obvio que a eficácia da Reforma psiquiátrica brasileira se expressa na melhora nítida e demonstrável na qualidade de vida da população local a qual tem responsabilidade territorial por atender, uma vez mais é o caso de dizer e ir um pouco além: Em que e aonde ela está autorizada desde seu lugar a dizer o certo do errado no campo ampliado dos cuidados e dos debates em saúde? Penso que seja possível partilhar com vocês que é em seu caráter cientifico que ela extrai sua consequente participação nessa matéria. Se é verdade que Reforma psiquiátrica e o campo da atenção psicossocial são uma subversão e reordenamento político no laço social para o tratamento historicamente reservado às loucuras via isolamento e segregação, igualmente verdade são os princípios metodológicos e científicos construídos que dão sustentação real a possibilidade de tal subversão.

 

Gostaria para esse trabalho de trazer uma relação entre atenção psicossocial e uma tendência por vezes interna das próprias equipes a se distanciar do campo clínico, científico e do debate ampliado, estes que justamente sustentam sua práxis. Fui membro de uma equipe que se via lançada no caos em função de não ter supervisão clínico-institucional diante do atendimento a casos complexos. Nesse estado de coisas em um CAPS encontram-se as condições concretas para sua demolição a partir de dentro por sua distância da clínica, da ciência e seu debate. Isso caminha para o caos e um desmonte interno, por uma oposição que vai de encontro ao desmonte externo que o SUS e a Reforma Psiquiátrica sofrem desde o governo Temer. Sem supervisão um CAPS pode ser um caos ou se burocratizar em protocolos de atendimento infinitos.

 

(*) trabalho apresentado na VIII semana da Psicologia e I Encontro da Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Mato Grosso  – UFMT na mesa Psicanálise e saúde mental no dia 26 de Julho de 2019

(**) psicanalista – membro do Laço analítico/ Escola de psicanálise sub-sede Cuiabá. Professor da Universidade de Cuiabá – UNIC, membro da equipe Psicanálise na rua em Cuiabá

Para tal empreitada trago uma breve história recente da ciência contemporânea e suas consequências políticas e subjetivas em alguns países do mundo. Se trata de uma curiosa hipótese em um estudo envolvendo a causalidade do autismo e algumas repercussões no mundo.

 

Foi em 1998, que um médico britânico Andrew Wakefiled popularizou o que ficou conhecido como o mito da ligação entre autismo e vacinas. O então médico e sua equipe na pesquisa trabalharam com uma curiosa hipótese de um vínculo causal entre a vacina que atua como proteção contra sarampo, rubéola e caxumba (a MMR) à graves problemas intestinais, estes por sua vez levariam a uma inflamação no cérebro, causando com isso inclusive o autismo.

Essa vacina está no grupo de aplicação do vírus vivo atenuado, conhecida como tríplice viral é aquela de aplicação cotidiana aqui no Brasil e no mundo, em duas doses a crianças de até os 12 meses, seguida da segunda dose aos 15 meses e revacinada a vida escolar dos 4 a 6 anos.

 

O ano como disse era 1998, a pesquisa discorria sobre o caso de 12 crianças, descritos como apresentando graves problemas intestinais e comportamentos autistas, todas com vestígios de sarampo publicado na renomada revista Lancet. 11 delas haviam sido vacinadas com a MMR, e eles chegam a uma peculiar vinculação prenhe de consequências tão amplas no campo social na mesma proporção de sua aproximação do falso. Encontrei registros de que o médico afirmava se tratar apenas de uma hipótese, mas a consequência psicossocial imediata foi uma queda dos índices de vacinação na Inglaterra e em outros países na Europa.

 

No primeiro trimestre de 2017 foi registrado uma epidemia de sarampo em função da queda da imunização via MMR, a população recuava da aplicação de vacinas. Se em 2016 os registros localizaram mais de 5000 pessoas infectadas com sarampo, o número em 2017 foi para mais de 21000, portanto um aumento de mais 400% divulgados pela OMS em 20 de fevereiro de 2018.

 

Poucos anos depois da popularização do estudo, nos Estados Unidos uma hipótese análoga vinculava a causação do autismo a vacinas não com o MMR, mas com o timerosal, este consiste de uma dose mínimo de 25 gramas de mercúrio por 0,5 ml, este atua como elemento protetor contra fungos e bactérias que compõe algumas vacinas, principalmente aquelas que exigem mais de uma dose. A Fiocruz aponta que a OMS defende o uso do componente nas vacinas apoiada em pesquisas que mostram claramente que não há coisa alguma até então que vincule a aplicação da pequena dose mercúrio no corpo pós vacinação a algum dano à saúde. O mercúrio, portanto, não se acumula em repetidas injeções e é expelido rapidamente pelo organismo.

 

Na Dinamarca o timerosal já havia sido retirado das vacinas desde 1992 e o autismo não parava de aumentar em sua população, reforçada por outra análise dessa vez na Califórnia aonde o timerosal foi retirado das vacinas nos anos 2000 e o autismo também aumentou, contrastando frontalmente com a curiosa hipótese, mas sendo ineficaz quanto a suas consequências sanitárias danosas para inúmeras populações que passaram a adoecer de uma doença facilmente combatida.

 

Esses estudos, dados e múltiplas pesquisas em torno do autismo e suas supostas causalidades tem sido objeto de tratamento de pesquisa de inúmeros campos do saber que circunscrevem o contexto contemporâneo que decidiu tomar o autismo como um grande mal a ser combatido, para além do enigma de sua causa. Acompanhemos e tentemos ler com aquele que lê o mal a ser pesquisado aí.

Um signo é aquilo que representa algo para alguém, como Lacan nos ensina. Se atentarmos a distância fumaça saindo de algum ponto, nada nos informa precisamente se se trata de um incêndio, um churrasco ou um evento natural ainda não descoberto por nós. Nada senão o signo do que entendemos acontecer ali antes mesmo de saber do que se trata é dado a nossa apreensão imediata, e reagir bem ou mal diante desse entendimento sobre a realidade que é o signo é uma de suas consequências esperadas.

Qual os signos que estes estudiosos enxergam quando olham para tais dados que encontram? Faço a suposição de que é o próprio autismo enquanto o signo da catástrofe anunciada para a vida do sujeito e sua comunidade. O porque convém interrogar agora.

 

Afinal, como esse que é o propositor da pesquisa encontra como ponto axial de sua leitura um signo dessa ordem? Lembrando que é este (o signo) que o informa de sua hipótese a ser verificada, e não o contrário. Logo, não há nada a se verificar no campo real aonde o tratamento de um sujeito autista acontece, como num CAPS, CAPSi, consultórios de inúmeros pediatras, fonoaudiologistas, terapeutas ocupacionais, psicanalistas e outros. Este (aonde acontece o tratamento real) é o campo que é esvaziado de importância na investigação clínica e científica de pesquisas como essa. Sobre o sujeito se aplica um signo que paire a cabeça do pesquisador, pois se entende que do sujeito ou com ele coisa alguma pode ser extraída que o valha para a ciência. Eis uma das razões que fazem com que a Reforma justamente por ser rigorosamente cientifica alvo de um desmonte que atinge o SUS, o SUAS, a educação pública e por princípio, a própria ciência. Desmonte que lhe antecede e continuará ao que tudo indica enquanto a ordem do capital for vigente.

 

Afinal, o que orienta tenazmente uma hipótese como essa que vincula autismo as múltiplas coisas que caiem na cabeça de qualquer um senão somente o lugar preciso em que está a cabeça desse um qualquer? Qual o fio lógico que tem permitido um ordenamento tão peculiar as pesquisas quando se trata de autismo?

 

Admito aqui a justa e necessária intervenção de algumas condições epistemológicas para balizar o campo cientifico ao qual tal pesquisa se refuta a apresentar, nos termos de Karl Popper (1974):

 

Uma ousadia de prever, associado à disposição de buscar testes e refutações, é o que distingue a ciência “empírica” da não ciência e, em especial, dos mitos pré-científicos e da metafísica.

(pg. 121)

 

Por referência ao campo epistemológico e não sem ele, temos condições de dizer que não é ruim ou impróprio partir de uma hipótese como a desse grupo de pesquisadores desse médico britânico mesmo com toda arbitrariedade e abstração que lhe é peculiar, por oposição a um tratamento real de sujeitos autistas em CAPS, CAPSis e consultórios de psicanálise. Toda pesquisa parte de uma suposição, uma conjectura e até aí estamos no solo comum a toda ciência, a questão nova que Popper traz é que uma conjectura só é arrojada se ela “assume grande risco em ser falsa” (pg. 118), recusando essa dimensão sequer poderíamos dizer que é de ciência que se trata.

 

Popper nos conduz a Copérnico para dizer que mesmo não propondo experimentação alguma que demonstrasse suas previsões, a teoria heliocêntrica do astrônomo era cientifica pois ousava realizar previsões que se expõem a refutação, e, portanto, permitem inaugurar um campo que não se encerra com a falsa postulação de um dogma incontestável. Ciência é um campo ampliado de longas e diversas conjecturas que se dialogam e não se poupam de refutação via um confronto crítico por sua relação com a verdade.

 

A ousadia do tipo especial que é a do cientista é nas palavras de Popper:

 

Trata-se da ousadia de uma conjectura que corre um risco real – o risco de ser testada e refutada, o risco de entrar em conflito com a realidade (pg. 121)

 

Pois bem, com Popper chegamos a um melhor discernimento mais ou menos partilhado de que vincular como hipótese vacina, doença gastrointestinal e autismo é das menos arrojadas possíveis, não só distantes como avessas ao campo científico por seu apego a uma abstração generalizante distante do concreto que é o tratamento real de um autista em CAPS por exemplo. Temos que essa hipótese se refugia de refutação pois se abstrai da realidade com fins de evitar o conflito, eis, portanto em que uma pesquisa como essa nada mais é que um sintoma. Este é o primeiro ponto.

 

O segundo ponto exigirá conhecermos o fim da história desse estudo. Foi em 2004 que veio a público que antes da publicação em 1998 dos estudos vinculando autismo a vacinação, o médico pesquisador havia realizado um pedido para patentear uma vacina contra sarampo concorrente a MMR. E as coisas foram adiante até onde alcancei em minha pesquisa sobre o assunto, descobriu-se que o médico recebia pagamentos de advogados em processos por compensação de danos provocados por vacinas, e outro fato, um outro médico auxiliar na pesquisa de 98 veio por se manifestar que as 12 crianças testadas não tinham vestígios algum de sarampo, fato ignorado propositalmente pelo médico propositor da pesquisa.

 

A revista Lancet que publicou o estudo em 1998 se retratou publicamente alegando falsa aquela pesquisa. O Conselho Geral de Medicina do Reino Unido julgou o médico “inapto para o exercício da profissão”, entendendo-o como “irresponsável”, “antiético” e “enganoso”. Com Popper acrescentaríamos que isso se trata de uma falsa ciência ou não ciência.

 

Foi procurando o terreno que ampara a ousadia de uma hipótese tão pouco arrojada e cientifica quanto essa que nos encontramos com uma de suas fontes mais ordinárias na disputa por intervenções na ciência que é a ordem do capital. Esse fato ainda nos surpreende? Se na dissonância entre o concreto e o abstrato nas pesquisas estamos suficientemente advertidos e há mecanismos que se empenhem em seu filtro público, ético e metodológico, extraímos o que faz do capitalismo o verdadeiro e único problema real para a ciência aqui. Pesquisas orientadas para o lucro.

 

O outro ponto dessa história é (o que na falta de um nome mais apropriado chamarei de) a construção de uma fobia social que vem responder prontamente para orientação da eleição como objeto fóbico o próprio autismo. Como analista de autistas há alguns anos, venho recolhendo o tortuoso e difícil percurso que familiares (principalmente mães de autistas) vem fazendo após a comunicação do diagnóstico na infância.

 

O percurso é quase típico, a criança inicia a fala e em determinado momento interrompe essa atividade. A escola, o pedagogo, o fono, o pediatra com ou sem tato algum diz do autismo aos pais. Estes entram em pânico e com muita propriedade adentram uma pesquisa interminável que dê um amparo a sua angústia. Esse geralmente é um momento dos mais dolorosos pois não há pai ou mãe que não pense ao menos uma vez que esse significante autismo é o signo de toda sorte de catástrofes possíveis inimagináveis que irão assolar suas vidas e de sua filha ou filho. É preciso tempo na análise de seus filhos e filhas, ou nas suas para que os mesmos verifiquem que a vida segue e não existe relação alguma entre ser autista e levar uma vida miserável. A vida sofre seus rumos trilhando um percurso novo que inclui as particularidades que forem aparecendo por essa condição subjetiva peculiar chamada autista e refinando assim o laço social que segregava a população autista dentro de casa ou nos manicômios.

 

Em termos simples, um sujeito autista não é sinônimo de uma criatura abominável, auto ou heterodestrutiva, ausente de laços presa num mundo interior com cérebro danificado que será hiperdependente nas chamadas atividades da vida diária. O autismo só é fóbico para quem faz dessa condição subjetiva razão de seus temores. E me parece importante dizer que não é orientado para a fomentação dessa fobia social que se pode conduzir as pesquisas sem que intervenham nelas interesses outros que não os da ciência. Em resumo, suspeita é toda pesquisa que se empenha na promoção de uma calamidade pública com hipóteses falsamente cientificas tanto mais se apoia nelas com fins outros. De modo que ousaria prever (no sentido de Popper) que se é nisso que algumas pesquisas se apoiam seus fins já são outros uma vez que não científicos, portanto poucas considerações deveriam merecer mais do que tem recebido senão para demonstrar sua impropriedade.

 

Os manuais de psiquiatria que se querem a-teóricos CID e DSM, tem sua responsabilidade pela pulverização de quadros clínicos agrupados sobre o nome de transtornos sem as distinções precisas da boa psiquiatria clássica, numa tendência rumo a uma psiquiatria exclusivamente medicalizante do comportamento avessa aos princípios metodológicos que se dispõem a pensar um tratamento para o sujeito do alienista Philippe Pinnel, fundador do campo psiquiátrico.

 

Final do século XIX e início do século XX causou em alguns (Freud foi o mais consequente deles) um mistério e curiosidade sem igual ao se descobrir que a hipnose podia tanto produzir quanto retirar os sintomas histéricos, tal como um fato que surpreendeu a muitos em minha equipe do CAPS, quando um paciente autista que nunca falava após considerável tempo de tratamento demonstra que era capazes sim de falar numa assembleia geral em que se decidia a sobremesa da oficina de culinária, mas senão falava todo esse tempo a razão era outra que não tão simplesmente demonstrável através de uma fraca e abstrata hipótese que vincula vacina a autismo, e outras mais atuais que reduzem o sujeito há um desarranjo cerebral, social, nutricional ou neuroquímico. Para isso e é a psicanálise que nos conduz aqui, o autismo tomado como uma posição subjetiva que assim como um sujeito histérico se defende de algo que lhe é extremamente desagradável, é algo que se revela como pertinente e de interesse a ciência, não? Tanto mais a interessa quando verificamos que efeitos como esse surgem de um tratamento dos mais cotidianos e concretos da clínica psicanalítica em consultório ou psicossocial num CAPS a esses sujeitos. Que tem encontrado como efeito em sua pesquisa nos tratamentos, possibilitar ao sujeito ceder um pouco de seu jeito de se defender em sua posição e a rearranjar-se, reposionar-se em seu modo peculiar de fazer laço, que aparecem e podem ser expostos aqui em momentos surpreendentes a uma equipe de CAPS como esse de enunciar uma fala no lugar do silêncio de sempre, manifestando seu voto por um bolo de coco. Demonstrando que o autismo pode ser sim mais que um diagnóstico e menos que um transtorno.

Se a Reforma psiquiátrica no Brasil sobreviver é o ponto capital atual de nossa preocupação frente aos retrocessos neoliberais, que não se esqueça no caminho que uma das condições para sua sobrevivência é ser rigorosamente cientifica quando tudo a incentiva a deixar de ser. Se opondo ao desmonte interno, assumindo a parte que lhe cabe na aliança que por vezes faz ao desmonte mais amplo e geral. Penso que este é verdadeiramente seu ponto nodal e estratégico.

Obrigado

 

Referência:

 

POPPER,Karl. O problema da demarcação (1974). (Org.) MILLER, David. In: Textos escolhidos. Ed. PUC-Rio Contraponto, 2010

Michel Maffesoli e os Junguianos para diálogo

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Michel Maffesoli (Graissessac, 14 de novembro de 1944) é um sociólogo francês conhecido sobretudo pela popularização do conceito de tribo urbana.

Antigo aluno de Gilbert Durand, é professor da Université de Paris-Descartes. Michel Maffesoli construiu uma obra em torno da questão da ligação social comunitária e a prevalência do imaginário nas sociedades pós-modernas. Ele é secretário geral do Centre de recherche sur l’imaginaire e membro do comitê científico de revistas internacionais, como Social Movement Studies[1] e Sociologia Internationalis.

Michel recebeu o Grand Prix des Sciences Humaines da Academia Francesa em 1992 por seu trabalho La transfiguration du politique. Ele é também vice-presidente do Institut International de Sociologie (I.I.S.), fundado em 1893 por René Worms, e membro do Institut universitaire de France – I.U.F.[2]

Origem: Wikipedia

Curso de Extensão – Estudando C. G. Jung >>2ª TURMA!!

É com imenso prazer que anuncio a abertura das inscrições da 2ª turma do Curso de Extensão – Estudando C. G. Jung.

Horário: 19h às 21h

Início: 7 de fevereiro

Aulas semanais (terças)

“A UTILIZAÇÃO DO ESPORTE COMO INSTRUMENTO DE EDUCAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO (RJ): A PSICOLOGIA NA ESTAÇÃO CONHECIMENTO – BRASIL VALE OURO”

 

 

“A UTILIZAÇÃO DO ESPORTE COMO INSTRUMENTO DE EDUCAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO (RJ): A PSICOLOGIA NA ESTAÇÃO CONHECIMENTO – BRASIL VALE OURO”

Por: Rodrigo Pieri

 

Resumo

Este artigo se propõe a trazer informações e discussões sobre a Estação Conhecimento – Programa Brasil Vale Ouro, uma instituição do Terceiro Setor, constituída como OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), que agrega a participação direta da comunidade e possibilita o estabelecimento de parcerias com as três esferas governamentais e entidades da sociedade civil organizada. Com público prioritário de crianças e adolescentes entre dez a dezoito anos, seu objetivo principal é desenvolver os alunos de forma integral, considerando as perspectivas físicas, intelectuais e cognitivas de cada indivíduoatravés do esporte de alto rendimento, assim como do processo de iniciação no esporte. Além disso, será realizada uma reflexão acerca da adolescência, enquanto um momento do desenvolvimento humano e suas etapas de construção social em um ambiente estimulante e construtivo. Enquanto ciência humana do comportamento, a psicologia na Estação Conhecimento atravessa a questão social e esportiva. Neste trabalho, ela é uma facilitadora da compreensão da problemática na qual o indivíduo está inserido. Ela atua conciliando a preparação para o esporte de alto rendimento e a construção de um cidadão ciente de si.

PALAVRAS-CHAVE: Adolescente, Educação, Esporte, Psicologia, Vulnerabilidade Social.

 

Você me abre os braços e a gente faz um país…”

(Lulu Santos)

Estação Conhecimento

A concepção da Estação Conhecimento se pauta no principio de garantir um legado de conhecimento sistematizado e institucionalizado para as gerações futuras, que permitam sustentabilidade do projeto sendo fundamental a articulação e integração com todos os setores da sociedade (Setor Público, Privado e Terceiro Setor). É constituída juridicamente como uma organização social do chamado Terceiro Setor – OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). A instituição caracteriza-se como um centro de referência local ou regional focado nas questões-chave: o desenvolvimento humano e o desenvolvimento econômico. Estações Conhecimento estão programadas para serem implantadas com subsídios da Fundação Vale nos território de atuação da empresa Vale, uma mineradora. O presente trabalho está pautado nas experiências vividas pelo Psicólogo da unidade da cidade do Rio de Janeiro/RJ.

Desse modo, no tocante ao desenvolvimento humano, o foco está no desenvolvimento integral e integrado da potencialidade humana, atendendo às necessidades e potencialidades nas dimensões físicas, emocionais e intelectuais com ênfase nas crianças, adolescentes e suas famílias. Já quanto ao desenvolvimento econômico, o foco está no fomento para a geração de renda nas áreas rurais e urbanas, e para tanto atua no apoio à organização produtiva, ao desenvolvimento tecnológico, ao processamento e comercialização da produção.

Esses desenvolvimentos, de um modo geral, são orientados pelas concepções e princípios respaldados nos quatro pilares da educação conforme afirma a UNESCO, os quais foram publicados no Relatório de Jacques Delors, fruto dos trabalhos da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI. Para esta comissão composta por especialistas em educação de vários pontos do mundo, é preciso criar condições para que a criança, adolescente e o jovem possam: conhecer o mundo que os rodeia (aprender a conhecer) para intervir nele (aprender a fazer) em conjunto com outras pessoas (aprender a conviver) e dessa forma se desenvolver (aprender a ser).

Tais pilares têm como premissa de que aprender na prática exige um processo de sistematização, que organize os aprendizados produzidos nestas combinações e se configuram como material pedagógico da Estação Conhecimento. A partir disso, são afirmados os princípios da Estação Conhecimento, os quais projetam que toda e qualquer formação precisa ter uma perspectiva de formação integral que amplie capacidades intelectuais, técnicas, culturais e cidadãs do público a quem se destina.

Diariamente, essas crianças e adolescentes, que se submeteram a uma bateria de testes físicos, avaliando suas habilidades motoras, todos regulamentados pelo Ministério do Esporte, participam de aulas e treinamentos esportivos. As modalidades são: atletismo, judô e futebol,sempre sob a orientação de profissionais da educação física, alguns inclusive ex-atletas olímpicos, e sob o “olhar” de uma equipe técnica multidisciplinar composta por um psicólogo, uma assistente social e uma pedagoga, que cuidam/monitoram/orientam e articulam as atividades extra desportivas, por exemplo, reuniões com os responsáveis, oficinas de convivência e cidadania, avaliação de satisfação (dos atletas e de seus responsáveis) e cursos oferecidos por eventuais parceiros. Todo o conhecimento gerado pela Estação é sistematizado e ficará de legado para as gerações futuras. Dessa forma, a Estação Conhecimento – Brasil Vale Ouro pretende contribuir para apromoção do desenvolvimento humano e econômico daregião onde está localizada, em todo território nacional.

Busca-se promover a melhoria da qualidade de vida dos moradores da região, oferecendo às crianças e adolescentes e, consequentemente, às suas famílias, uma maior consciência sobre suas possibilidades de escolha nos âmbitos social, cultural e econômico, através do esporte. Os reflexos podem ser percebidos na fala de um de nossos “atletas”:

Bom, primeiramente, eu quero dizer que a Estação foi uma das melhores coisas que aconteceu no bairro, porque deram (sic) uma esperança para as crianças que tem (sic) o sonho de ser um atleta… Agora me sinto melhor comigo mesmo…”

(Aluno do Futebol, Engenhão/Rio de Janeiro)

Esta fala se deu em um dos processos avaliativos que os adolescentes fizeram em seu primeiro trimestre de Estação Conhecimento Engenhão. Estação Conhecimento localizada no bairro do Engenho de Dentro, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. A pergunta era simples e direta: O que você acha da Estação Conhecimento?

Eu quis ser eu mesmo

Eu quis ser alguém

Mas, sou como os outros

Que não são ninguém”

(Pato Fu)

ADOLESCÊNCIA:

Um dos públicos alvos da Estação Conhecimento, a qual foi criada para atender objetivos já aqui descritos, são os adolescentes e suas complexidades no que diz respeito a sua educação e seu processo de socialização. Por isso, se faz necessário o entendimento do que representa esta etapa do desenvolvimento humano, sobretudo psíquico, o qual leva em consideração não apenas os aspectos biológicos, estes já tão explorados pelo senso comum, mídia e estudos acadêmicos. Mas que, além disso, permita a compreensão dos comportamentos e sentimentos observados neste momento da vida.

Assim, situada em diferentes regiões do país, a Estação Conhecimento trabalha, em sua maioria, com adolescentes, um público que, Conttardo Calligaris (2009) definiu como “ideal coletivo que espreita qualquer cultura, que recusa a tradição e idealiza a liberdade, independência, insubordinação, etc.” (CALLIGARIS, 2009, p.73). Estas características definem muito bem as reações e relações presentes no dia a dia da Estação, mesmo tendo o esporte como um forte atrativo. Em seu livro “A Adolescência”, o autor explica que até o meio do século passado, a adolescência “não era um fato social reconhecido. Era uma faixa etária, mas não por isso um grupo social. Ainda menos um estado de espírito e um ideal de cultura” (CALLIGARIS, 2009, p.60). Isto, talvez, possa explicar a forma adolescente de se relacionar com o mundo externo.

Posto os aspectos mais intrínsecos ao sujeito, se pode, agora, contextualizar os adolescentes do Brasil, os quais movimentam suas vidas num horizonte de incertezas quanto às ações do presente e às do porvir em um cenário de afunilamento da sociabilidade juvenil, onde se têm, por exemplo, jovens envolvidos com o tráfico, sem perspectivas de formação de vínculos sociais. Estação Conhecimento – Brasil Vale Ouro, através do esporte, surge com a oferta de oportunidades de convívio social saudável, fomentando sonhos e planos para o futuro, por meio de certezas concretas de integração e pertencimentos sociais tangível nas práticas esportivas, vivências em grupo e conteúdos voltados à formação cidadã. Tenta-se dar continente a esse momento de vida que Rúbio (2001, p. 162) definiu como sendo A hora da grande batalha para partir do mundo parental e viver a morte simbólica dos pais e do filho, para assim poder surgir o indivíduo, o adulto”.

PSICOLOGIA DO ESPORTE NA ESTAÇÃO CONHECIMENTO – BRASIL VALE OURO:

Neste ambiente em que o esporte se empresta como ferramenta principal para o desenvolvimento e a constituição de centenas de crianças e adolescentes, o trabalho é realizado numa perspectiva multi e interdisciplinar. Em um lugar atravessado por distintos saberes (educação física, administração, assistência social, pedagogia e psicologia), fica a pergunta: qual o trabalho a ser feito pelo psicólogo?

A primeira vista o trabalho é múltiplo, assim como são múltiplas as possibilidades de atuação de um psicólogo no esporte e assim como são múltiplas as possibilidades de atuação de um psicólogo que trabalhe com crianças e adolescentes. Logo, na Estação Conhecimento, que une esporte e juventude, o profissional da psicologia atua como Psicólogo Social, de RH, Clínico, Institucional e Psicólogo Esportivo.

Para esse trabalho, nos ateremos na atuação como Psicólogo Esportivo e como ele pode auxiliar na formação dos atletas da Estação.Importante lembrar que, nas Estações Conhecimento, o esporte nas quatro modalidades –Judô, Atletismo e Futebol – pode ser praticado como alto rendimento e/ou iniciação, porém ambos com um mesmo objetivo final: formação integral do sujeito. Kátia Rúbio (2001) subdividiu o esporte em “esporte performance, esporte participação e esporte educativo”.Diz ela em seu livro O Atleta e o Mito do Herói – o imaginário esportivo contemporâneo:

As práticas esportivas contam com manifestações distintas, embora interatuantes, podendo ser dividas da seguinte forma: esporte performance, que se objetiva rendimento, numa estrutura formal e institucionalizada; esporte participação, visa o bem-estar para os movimentos de educação permanente e com a saúde; esporte educação, com objetivos claros de formação, baseado em princípios sócio-educativos, tendo como finalidade a preparação de seus praticantes para a cidadania e para o lazer. (RÚBIO, 2001, p.96)

De acordo com Benno Becker Júnior (2001), é muito difícil determinar o começo exato da Psicologia do Exercício e do Esporte no Brasil, visto que estes eventos têm pouca, ou nenhuma, divulgação. Algumas pesquisas oficiais mostram que a Psicologia do Exercício e Esporte tem seu registro inicial em 1954, no Departamento de Árbitros da Federação Paulista de Futebol.

A pergunta que se mantém é “qual é a atuação da psicologia no esporte?”, visto que a sociedade

(…) vem se organizando na atualidade de forma a valorizar a ascensão, a vitória, o melhor, impondo um padrão de comportamento que privilegia o mais forte, o mais habilidoso.”.(Rúbio, 2001, p. 11)

Principalmente por se tratar de uma psicologia esportiva com um público onde “as surpresas de um novo parâmetro de vida estão sendo conhecidas e a única certeza que se tem, diante do inesperado, é que o devir comporta muitos perigos” (Rúbio, 2001, p. 160/161). Para responder tal pergunta, traremos dois exemplos de experiências e resultados ocorridos nas Estações Conhecimento Rio de Janeiro e Tucumã, a partir da intervenção da psicologia esportiva.

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS COM ADOLESCENTES NA ESTAÇÃO CONHECIMENTO – BRASIL VALE OURO:

A partir dessas definições, segue o exemplo para ilustração e análise:

RELATO DA EXPERIÊNCIA:

O relato a seguir refere-se ao relatório construído pela equipe de psicologia da Estação Conhecimento Rio de Janeiro, no início do ano de 2011, após a primeira competição de atletismo fora do estado do Rio de Janeiro. No intuito de manter o sigilo de seu nome, o atleta receberá o codinome Torres.

Torres, nascido em 1996, disputaria a prova dos 400m. Na ocasião, saía do Rio de Janeiro pela primeira vez. Durante todo o processo preparatório para a competição São Silvestrinha 2010, demonstrou dificuldade de relacionamento com os demais atletas da delegação. Constantemente oscilava seu humor, ora agressivo e intempestivo, ora calmo e dedicado. Inevitavelmente sua oscilação refletiu-se durante a corrida. Se antes da largada, disse que iria usar a lembrança que trazia de nosso trabalho no Rio de Janeiro (uma frase retirada do livro do Bernardinho (2006) “Transformando Suor em Ouro” que recebeu durante uma atividade lúdica preparatória para a viagem.), ao correr, na última curva, inesperadamente, tentou dar um chute em um dos atletas que disputava posição com ele e desacelerou, praticamente desistindo da corrida. Quando foi questionado o porquê de ter feito aquilo, o mesmo deu duas respostas diferentes para dois membros da equipe técnica. Se para um dos técnicos alegou ter sido agredido e que queria revidar, para outro disse ter sentido uma fisgada na perna. Torres provou sua capacidade esportiva por ter conquistado um lugar na seletiva para competição. Entretanto, o mesmo, durante todo o processo, também demonstrou que precisaria ser observado e receber uma atenção especial pela equipe técnica no ano de 2011.

Após a competição, os atletas saíram de férias. Ao retornarem, um mês depois, Torres, nos primeiros dias de treinos, novamente apresentou oscilação de humor. Ele, que sofria de um estrabismo brando, o qual, por ser muito perceptível, o caracterizava, começou a receber apelidos de seus companheiros de treinos, o que por ele era respondido com agressão física. Torres, em certa ocasião, acertou uma maça na cabeça de um de seus companheiros de treino, ao ser questionado pela equipe de psicologia, o porquê fizera aquilo, sua resposta foi curta e direta: “ele me chamou de Zé do Olho”.

Em outra ocasião, Torres, que treinava uma nova modalidade (lançamento de dardo) por algum motivo, que ele mesmo não soube responder o porquê, lançou o dardo na direção de seu técnico, que só não foi atingido por poucos centímetros.

Na tentativa de se entender o motivo dessas súbitas reações, Torres teve seus responsáveis convocados para uma reunião com a assistente social e com o psicólogo da equipe. O intuito era conhecer mais sobre o menino e sua forma de se relacionar fora do espaço da Estação Conhecimento. Na entrevista, a mãe de Torres disse que nunca vira seu filho tão envolvido com algo, como ele estava com o atletismo, que seus hábitos alimentares haviam melhorado e que o mesmo sempre buscava na internet e na televisão informações sobre competições de atletismo. Essa informação foi recebida com certa surpresa pela equipe. Se gostava tanto de atletismo, se estava tão envolvido com as propostas da Estação, porque então Torres reagia em certas situações com tanta agressividade?

A possível resposta foi percebida na continuação da entrevista, quando foi revelado que Torres, apesar de em casa sempre ter sido um filho companheiro e prestativo, na escola e em todas as outras instituições que já frequentara, a mãe sempre era convocada, pois havia comportamentos agressivos. A mesma disse que o estrabismo de seu filho era sempre motivo para brincadeiras e provocações de outros meninos e que isso o incomodava tanto que fizera a mãe o acompanhar, por diversas vezes, durante algumas madrugadas, nas filas de hospitais na busca de realizar uma cirurgia em seu olho. Todas as tentativas foram frustradas.

Atualmente Torres é muito respeitado por seus colegas de treino e suas reações agressivas diminuíram drasticamente. Acredita-se que foram alguns os motivos para que essa mudança. A seguir, analisaremos alguns desses motivos.

IDENTIFICAÇÃO COM O ESPORTE:

Uma semana depois desta entrevista, o Engenhão, local onde Torres treina, recebeu o “Meeting Internacional de Atletismo”. Um mês depois, no mesmo local, aconteceram as modalidades de atletismo do “V Jogos Olimpicos Militares”.Deu-se incentivo para que os atletas aproveitassem essas possibilidades para que se aproximassem mais do esporte. Torres, que antes sonhava em ser um jogador de futebol, além de ter assistido algumas competições, teve contato com atletas condecorados internacionalmente e pode assistir aos treinos e o processo de concentração e aquecimento dos mesmos. Torres se identificara com o esporte, como sua mãe já havia indicado, e isso o fez aumentar a dedicação, atenção e concentração nos treinos, conseguindo assim dar uma maior importância aos treinos do que as provocações de seus companheiros. Torres, que anteriormente era percebido por suas reações agressivas, passou a sonhar e se imaginar como atleta profissional. Para isto, mudou seu foco durante os treinos. Esta capacidade imaginativa dos atletas era sempre incentivada pela equipe de psicologia. Winnicott (1990, p.78) fala que:

A solução para os problemas da ambivalência inerente surge através da elaboração imaginativa de todas as funções; sem a fantasia, as expressões de apetite, sexualidade e ódio em sua forma bruta seriam a regra. A fantasia prova, deste modo, ser a característica do humano a matéria-prima da socialização e da própria civilização.

CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA IDENTIDADE A PARTIR DA MELHORA NO RENDIMENTO:

Por ter aprimorado seu envolvimento com os treinos e por ter começado a freqüentar os encontros com a equipe de psicologia, Torres, que já mostrara ter potencial para o atletismo, aperfeiçoou seus movimentos, aprimorou sua capacidade de foco e atenção, optou pelas modalidades de resistência e começou a conquistar um melhor rendimento tanto nos treinos, quanto nas competições. Aos poucos, Torres passou a ser reconhecido por seus companheiros de treinos como referência nas provas e nos treinos de resistência. Ele, que antes era reconhecido apenas por seu estrabismo, obteve uma nova identidade, passou a ser reconhecido por seus resultados e, sobretudo, sua dedicação nos treinos. Acerca do colocado até aqui sobre o jovem, Milman. Lulli & Bezzera Jr. Benilton (2008, p.23) acrescentam:

Quando ações realizadas pelo sujeito são bem sucedidas no sentido de serem acolhidas pelo ambiente e legitimadas por ele, elas tendem a se tornar hábitos subjetivos, ou seja, são incorporados aos padrões e esquemas de ações que se tornam “naturais”, que não mais suscitam interrogações.

A RELAÇÃO HORIZONTAL EXISTENTE ENTRE TODOS DA ESTAÇÃO CONHECIMENTO

Antes, Torres estava acostumado, em outras instituições de convívio, a ter suas reações respondidas de forma hierárquica e castradora, sem que ao menos buscassem conhecer sua história pessoal, seu mitologema (HILLMAN, 1997). No episódio ocorrido com seu técnico, a reação deste, apesar de ter ficado assustado e ter demonstrado sua reprovação quanto ao ato realizado, não foi de advertir de forma desmoralizante. Pediu apenas que parasse de treinar e esperasse para que conversassem depois. Durante a conversa, seu técnico perguntou o que acontecera e porque fizera aquilo, no intuito de dar continência aquela reação inadequada. Esse e outros episódios fizeram com que Torres percebesse que a Estação Conhecimento se tratava de uma instituição diferenciada. Um local onde o que importa é o sujeito Torres, sua história, seus anseios, seus sentimentos e seus desejos. Um local onde as relações entre todos se faz de forma dialética e horizontal. Sobre isso, diz Silveira (1981, p.75) “A volta à realidade depende em primeiro lugar de um relacionamento confiante com alguém, relacionamento que se estenderá aos poucos a contatos com outras pessoas e com o ambiente”.

Ainda há muito que ser feito no caso Torres. Porém, a relação com o esporte, com os professores, como os outros atletas e principalmente com ele mesmo já se transformou.

CONCLUSÃO

Posto tudo isso até aqui, percebe-se a constituição de sujeito como algo potencialmente inerente ao ser humano sob a ação das estimulações externas, das figuras externas, as quais possuem algum tipo de influência. A partir dos relatos de caso e os colocando a luz do levantamento teórico previamente realizado, fica bastante evidenciada ação que as figuras cuidadoras e, sendo mais específicas, as figuras maternas e paternas participam ativamente deste processo de construção de um sujeito.

Ainda, tem-se evidenciado em caráter coadjuvante a ação de um projeto sócio-educativo-esportivo como um mecanismo de opção para “complemento” ou, até mesmo, uma efetiva apresentação de valores e objetivos construtivos para um jovem carente material, afetivo e moralmente falando. Os profissionais ali envolvidos acabam por assumir inconscientemente parte dessa função.

Por fim, se apresenta o olhar e ação do Psicólogo e suas nuances de ação mediante às necessidades colocadas pelas situações institucionais e pelo público, o qual procura por ajuda na Estação Conhecimento. Este profissional portador de uma teoria de ser humano, ao qual abrange um olhar biopsicossocial, acaba por se tornar um elemento necessário para compor a equipe multidisciplinar da instituição, na medida em que ela mesma é algo novo e em processo de construção e bastante motivada a somar em seus públicos alvos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECKER JUNIOR, Benno. La Psicologia Del Ejercicio Y Del Deporte em Brasil Y América Del Sur,inRevista de Psicologia del Deporte, v. 10, n. 2, p. 249-253, 2001

BEZERRA, Junior. Benilton. & MILMAN, Lulli. A Casa da Árvore – uma experiência inovadora na atenção à infância. 1.ed. Rio de Janeiro: Garamond Ltda. 2008. 224p.

CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. 2. ed São Paulo: Publifolha, 2009. 81p.

HILLMAN, James. O Código do Ser – Uma busca do caráter e da vocação pessoal. 1.ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda., 1997. 353p.

RÚBIO, Kátia. O Atleta e o Mito do Herói – O imaginário esportivo contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. 225p.

SILVEIRA, Nise. Da IMAGENS DO INCONSCIENE. 1.ed. Rio de Janeiro: ALHAMBRA. 1981 346p.

WINNICOTT, Donald Woods. Natureza Humana. 1. ed.Rio de Janeiro: Imago, 1990. 222p.

Essa foi a história de outro inconsciente que se individuou.

Ontem, dia 27 de outubro de 2011 tivemos a triste notícia do falecimento de James Hillman.

O criador da Psicologia Arquetípica nasceu em 1926, escreveu mais de 20 livros e tornou-se referência internacional em psicologia profunda.

Polêmico e instigador, nutria um terrível amor pela “guerra”, como intitulou seu livro mais biográfico. Colocou a própria psicologia no divã analisando-a com muita propriedade resgatando seus antecedentes históricos e todo imaginário que desde então a envolve através dos tempos.

Colecionou fãs e desafetos no meio acadêmico, porém a alma era a sua prioridade. E esta sempre tinha algo a dizer em sua opinião, fosse nas relações de amizade, fosse (principalmente) nas tensões dos relacionamentos conturbados, tanto para com o exterior como para o interior.

James Hillman insistiu em nos puxar para baixo e fazer-nos entender que esse movimento não era tão pejorativo quanto sua representação social. Insistiu em reconectar a palavra “aprofundamento” com a ideia da descida ao mundo dos mortos.

Foi radical inversor da ordem psicológica e arrebanhou uma legião de seguidores por isso e ao escrever seu livro mais popular, O Código do Ser (The Soul’s Code), inverteu a sua própria ordem sendo fiel à sua tradição trickster e conseguiu a indignação acadêmica de muitos de seus admiradores.

Mas era filho de Marte e havia nascido para isso.

Fez alma até o fim da vida e teve tempo de ver e ler as homenagens que recebeu por seu trabalho.

James Hillman foi para o mundo das imagens e estará sempre pronto a atualizar-se onde quer que o termo “alma” seja proferido. Não para discutir o seu conceito, e sim para convidar a essa vivência.

‎”A verdadeira revolução começa no indivíduo que pode ser verdadeiro com sua depressão” – James Hillman

Curso de Extensão – Estudando C. G. Jung e a Psicologia Analítica

Diálogos Junguianos na nova era.

Amigos.

É com imenso prazer que gostaria de anunciar que a nova tecnologia já está à disposição do Diálogos Junguianos. Já é possível acessar o DJ pelo seu celular ou smartphone de maneira confortável, ou seja, em uma versão adaptada à tela do seu aparelho sem precisar ficar fazendo “manobras” para ler os textos (versão mobile).
Dessa maneira, o DJ torna-se atrativo em conteúdo e acessibilidade podendo ser desfrutado onde quer que você esteja.

É a tecnologia à serviço da educação e divulgação do saber.

Diálogos Junguianos

Curso de Extensão – Estudando C. G. Jung

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OS CONTOS DE FADA E O DESENVOLVIMENTO INFANTIL. UM CASO CLÍNICO

OS CONTOS DE FADA E O DESENVOLVIMENTO INFANTIL.  UM CASO CLÍNICO

Por: Rodrigo Pieri

Introdução

Durante o primeiro semestre do ano de 2007, tive a oportunidade de compor o quadro técnico da equipe multidisciplinar, coordenada pelo Dr. Jairo Werner. A equipe atuava, e ainda atua, no ambulatório infantil da Universidade Federal Fluminense. Na época, além da minha presença como psicólogo, havia uma psicanalista, duas psicopedagogas, dois psiquiatras, uma terapeuta corporal, dois estagiários de medicina, dois técnicos de informática e uma voluntária, que acabara de ingressar no curso de Psicologia.

Nosso público era toda e qualquer criança atendida pela equipe de psiquiatria e encaminhada para o projeto “Tendas da Inclusão”. Temos aqui duas características do projeto: não havia criança acolhida pela equipe sem acompanhamento psiquiátrico inicial e não havia um diagnóstico específico para que a criança pudesse participar.

Desta forma, as “Tendas da Inclusão” recebiam crianças com as mais diversas queixas: abandono familiar, dificuldade de aprendizado, déficit cognitivo, esquizofrenia, autismo etc. Nossa preocupação não era com a cura, mas sim uma aceitação das características de cada indivíduo. “A condição dessa ajuda é uma aceitação da depressão, e não a ânsia de curá-la”.[1] O que determinava ou não sua participação no projeto, ou qual Tenda seria recomendável sua participação, era a prescrição psiquiatra.

As crianças contemporâneas estão em contato – de forma direta ou não – com várias realidades e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e social. Vivem e interagem intensamente com outras crianças, partilhando experiências, quase sempre em situações mediadas por adultos, mas fazem-no de forma singular, ressignificando a cultura que lhes é apresentada, apropriando-se, reproduzindo e reinventando o mundo.[2]

As manhãs de sexta tinham a seguinte sequência: as crianças ao chegarem, dirigiam-se para a sala dos computadores e recebiam aula de inclusão digital; depois, eram convidadas a participar da tenda dos contos de fada, enquanto era oferecida para os responsáveis presentes a atividade de terapia corporal; em seguida, as crianças dirigiam-se para a “Tenda do Corpo”, enquanto seus responsáveis eram recebidos na “Tenda da Cidadania”, onde uma psicanalista e um estagiário de medicina os atendiam e organizavam debates pautados no dia-a-dia de cada famílias presente.

O psiquismo não pode ser pensado como apartado do corpo, nem do ambiente físico ou do mundo cultural que ele habita. Ao contrário, a emergência do sujeito e o processamento da experiência subjetiva se dão na interação permanente do indivíduo com o ambiente humano e simbólico que o circunda[3].

Desta forma acreditamos na eficiência de um ambulatório infantil, a partir da presença de uma equipe multidisciplinar e em um local onde os pais (responsáveis) dessas crianças também possam ser acolhidos.

A proposta desta exposição é apresentar o histórico clinico de um dos participantes daquele Projeto e, através da análise do caso, relatar a evolução dele no grupo e como essa evolução refletiu no seu desenvolvimento pessoal.

Para tal, teremos como principal foco a sua participação na tenda do conto de fada Conta que te Conto, destacando sua relação com o mundo imaginário dos contos – seus personagens, as sagas e as fantasias oferecidas –, com as outras crianças e com os técnicos da atividade.

Apresentaremos, então, o histórico clínico de um menino de sete anos de idade, morador de Niterói, filho de dois portadores do vírus do HIV+. Seu pai faleceu antes mesmo de seu nascimento e a mãe apresentava uma característica de ser “terrivelmente” protetora, devido aos traumas de sua própria história de vida. Ela proíbe que o filho tenha contato com qualquer pessoa, mantendo-se sempre presente, seja na escola, na vizinhança ou em qualquer lugar que ele estivesse.

Por essa razão, excessivos desvios individuais da norma, no bom ou no mau sentido, são danosos. Os efeitos de atenção demais ou de atenção de menos dada à criança são igualmente negativos. Distúrbios na vida da mãe, doenças, choques e traumatismos psicológicos são desvios de constelação arquetípica da relação primal e podem lesar ou bloquear o desenvolvimento da criança[4].

O menino, a quem chamaremos de Charles, fora encaminhado para o ambulatório por apresentar comportamento agressivo e inquietação psicomotora.

A escolha dos contos de fada como ferramenta terapêutica surge, principalmente, pelas características próprias desse recurso literário. Edgar Morin, em uma palestra na Candido Mendes, no Centro Rio de Janeiro, em Julho de 2009 destaca: “A psicologia nos apresenta apenas a radiografia do sujeito. A literatura é a única forma de conhecermos o homem como um todo”.

Os contos de fada são histórias contadas há muitos anos, por varias civilizações, culturas e tribos. Não é necessária nenhuma capacidade intelectual específica para compreendê-los, Eles possuem linguagens simples, diretas e de fácil acesso.

(…) sem que percebamos, essas estórias falam da realidade do ser humano, de sua busca, de seus traumas e dificuldades ao lidar com papai e mamãe, de seu desejo de ser herói, dos monstros que ele às vezes sente que tem de combater durante a vida. [5]

Na narrativa de um conto, não há um pedido para que se acredite de forma objetiva no que esta sendo dito, mas sim uma possibilidade que essa narração possa, de maneira simbólica, atingir áreas para o além do consciente do ouvinte, já que os contos carregam acontecimentos que se espelham com a intimidade de cada psique. Isto é, aquilo que Carl Gustav Jung considerou como os conteúdos do inconsciente coletivo, chamando-o de Arquétipos.

Outra forma bem conhecida de expressão dos arquétipos é encontrada no mito e nos contos de fada. Aqui também, no entanto, se trata de formas cunhadas de um modo específico e transmitidas através de longos períodos de tempo.[6]

Além dos ensinamentos que os contos têm para nos oferecer, analisaremos, também, a importância da relação de um sujeito com o outro e as possibilidades de uma criança poder elaborar e contar sua própria história.

E isto depende não de alguma competência psicológica para explorar fontes abissais de inspiração do interior de cada um, mas da possibilidade de brincar, de não se prender excessivamente aos hábitos (impregnados em imagens, atos, significados, expectativas) e de poder explorar, com confiança, as possibilidades de ampliação de seu horizonte de ação.[7]

O trabalho pretende nos mostrar também a dificuldade que há para uma criança “perceber” que o mundo que sua mãe apresenta é repleto de falhas, perigos e insatisfações. Além de ilustrar que assumir os próprios desejos e as responsabilidades de ser dono de seu próprio mundo, para assim poder escrever e contar sua própria história, também não é uma tarefa das mais fáceis. Para tal é necessário um esforço quase heróico, esforço esse encontrado em diversos contos de fada.

Para a realização de tal processo, entendemos que a construção de um espaço acolhedor é necessária onde a criança possa vivenciar e se defrontar com os medos e frustrações.

Por fim o presente trabalho pretende apresentar como os contos de fada, o desenho, o contato com outras crianças, a transferência e a contratransferência, o contato com o mundo imaginário e a arte de (re) contar sua própria história pode auxiliar uma criança no seu processo de desenvolvimento.

Importante destacar que, ao fim de cada narração de um novo conto era distribuído para as crianças material de desenho, para que pudessem expressar e ilustrar as fantasias identificadas através da história apresentada.

Na pintura, através do manuseio dos pincéis, lápis de cor, caneta e de outras ferramentas para desenho, o sujeito pode dar forma às suas emoções produzindo aquilo que não consegue verbalizar, através da linguagem simbólica.[8]

Por fim, perguntávamos sobre os desenhos e sobre o que acharam do conto.

Quando o contador dá tempo às crianças de refletir sobre as estórias, para que mergulhem na atmosfera que a audição cria, e quando encorajadas a falar sobre o assunto, então a conversação posterior revela que a estória tem muito a oferecer emocionalmente e intelectualmente.[9]

Os Encontros

No primeiro encontro, que ocorreu no dia 02/03/2007, optamos por nos apresentar, apresentar a atividade e pedi para que se apresentassem. Nesse dia tínhamos presentes Charles e mais uma menina. Finalmente, pedimos para que em conjunto contassem uma história.

Durante o encontro Charles transitou pelo espaço, querendo brincar com todos os brinquedos presentes, apresentando dificuldade de compartilhá-los com a colega. Quanto à história contada, Charles foi um dos principais narradores. Enquanto brincava contava a história. Neste primeiro encontro a equipe apenas observou, sem interferir na história.

“Uma moça loira, com um vestido longo azul, que tinha uma cintura enorme. Essa moça, que morava num castelo, queria ir a uma festa que estaria acontecendo ali pela redondeza, mas sua madrasta não permitia, dizia que ela tinha que faxinar o chão, lavar as roupas e as louças. Essa moça se chamava Cinderela.

Para essa mesma festa havia uma outra moça que morava no topo do morro e que tinha um cabelo enorme, ela queria muito ir, mas tinha um problema, estava presa nesse morro e não havia maneira de se libertar, a não ser pelos cabelos.

E lá, no fundo do mar, havia uma sereia, uma pequena sereia, que sonhava ter pernas e poder caminhar até a festa, conhecer um príncipe casar e ser feliz para sempre.

A única que acabou conseguindo ir à festa foi Cinderela, pois sua madrinha a ajudou a arrumar tudo que tinha como tarefa. Na festa ela conheceu um príncipe, que se apaixonou por ela, eles casaram e viveram felizes para sempre. Ela nunca mais teve que fazer coisas que sua madrasta mandava.

Quanto às outras duas, elas também encontraram seus príncipes, uma em cima do morro e outra debaixo do mar.”

Vemos aqui uma união de três contos e a presença constante da figura feminina.

Para o segundo encontro selecionamos A Rã Encantada, conto esse que, entre outras coisas, fala sobre limites e acordos entre uma menina e uma rã, desta vez o grupo já era maior, novas crianças foram encaminhadas pela equipe psiquiátrica. Charles, de início, teve muita dificuldade de aceitar as regras da atividade (horário, local, compartilhamento de material etc.), além de tentar chamar atenção da equipe técnica só para si. Mas isso foi logo contornado quando convocamo-no para ajudar na narração do conto, ilustrando os detalhes. Por exemplo, qual refeição a menina teve no jantar, ou como era a batida na porta que a Rã fazia. No fim, ao perguntar qual parte cada um havia gostado mais, Charles, assim como as outras crianças, preferiu a parte da mutação, quando a rã se transformou em príncipe, sendo que a transformação só ocorre no momento em que a menina consegue expor toda raiva e agressividade que está sentindo e joga a rã na parede.

Charles não veio na semana seguinte e, no dia do seu retorno, a história escolhida era Os Três Porquinhos. Charles, por já conhecer a história, se sentiu mais à vontade em ajudar a contá-la, o que acabou influenciando as outras crianças presentes (sempre encaminhadas pela equipe de psiquiatria. O grupo se construiu ao longo dos encontros) a fazer o mesmo.

Para semana seguinte o conto selecionado foi O Gato de Botas. Antes de começar a atividade, Charles me perguntou se poderia ser meu ajudante para contar as historias, respondi que não só ele, mas que todos poderiam, pois eu precisava da imaginação de cada um para conseguir contar.

Duas semanas se passaram, pois tivemos feriado e, no encontro seguinte, o único presente era Charles. Optamos então por deixar que o próprio nos contasse uma historia. Demos algumas folhas de papel e canetinhas e o deixamos à vontade.

Charles começou desenhando um mar e de imediato narrou:

Era uma vez um mar, e nesse mar havia um barco, um barco com muita comida, um barco de uma família muito alegre. Neste barco tinham 25 quartos. (nesse momento Charles desenha um barco com muitos quartos).

Num certo dia ensolarado, com muitas nuvens bem bonitas que chegavam perto do sol (enquanto contava ia desenhando o sol e as nuvens). Doze pessoas dessa família foram tomar banho de mar. Essa família era de 25 pessoas, e só um, o Rafael não estava no mar, mas sim lá em cima, no último andar do barco, fazendo ginástica e tomando sol. (Charles desenha a família no mar e o Rafael fazendo ginástica. Para em seguida começar a desenhar na parte de trás da folha).

Quando já estava de noite e todos estavam nos seus quartos dormindo em um outro barco, no barco de Moises, um barco tão lindo. – Cada quarto desse barco tinha uma cor, mas a cor que o barco mais tinha era o vermelho (Charles desenha o barco colorido de Moises) – de repente apareceu uma fada madrinha, a fada dos desejos para realizar todos os desejos de Junior. Junior era o mais novo da família, tinha 08 anos e estava muito triste, porque ele dormia no chão, não sabia nadar, não tinha televisão, não tinha Play Station, enfim, não tinha nada para brincar ou fazer. As outras crianças, que tinham todos os brinquedos, não gostavam dele, porque ele era uma criança bem quietinha, e as outras crianças, O Rafael de 16 anos e o Bruno de 39, eram bagunceiras.

O Junior pediu para que tudo que imaginasse se tornasse verdade, e ele imaginou uma sereia e o Super Homem (Charles que também tem 08 anos desenhou o Junior, a fada dos desejos, a sereia e o Super Homem).

No dia seguinte, (nesse momento Charles pede mais uma folha e desenha um outro barco todo preto e listrado) quando o sol estava bonito a família de Junior encontrou outras quatro famílias, num outro barco e todos falaram assustados:

– Caramba!!! Como chegamos nesse outro barco?!?!

– Junior como você conseguiu esses brinquedos?!?!?! Esse play station?!?!?!

E Junior respondeu:

– Basta eu imaginar e tudo acontece, mas isso é só comigo.

Todos ficaram amigos dele e no dia vinte e dois de dezembro todos foram na sua festa de aniversário e ele se tornou muito feliz (Charles também faz aniversário no dia 22 de dezembro).

Quando acabou de contar, me pediu para que escrevesse a palavra Fim bem grande.

A cada semana um novo conto era narrado. Contos com diferentes temas e propostas, mas foi no dia 18 de maio que encontramos a primeira rejeição de Charles. Antes mesmo da atividade, quando fomos chamá-los na sala de informática, batera o pé dizendo que não queria participar. Como a atividade é democrática dissemos que ele não precisava participar, mas não poderia ficar na sala de informática, pois iríamos fechar a porta.

Começamos a atividade sem ele, no meio da narrativa Charles resolveu entrar, mas ficou inquieto, tentando chamar a minha atenção. Ao perceber que eu continuei com a narrativa, ele começou um movimento de entrar e sair da sala até que no final optou por ficar. Ao fim da atividade Charles já estava sentado no circulo com todo mundo e pediu para que eu contasse a historia para ele. Perguntei se alguém poderia contar e um outro colega do grupo tomou a iniciativa. Charles ouviu atentamente. Após a atividade Charles e uma outra criança do projeto se estranharam. Ao perceber que o menino estava muito agressivo, Charles começou a provocá-lo. Mas rapidamente a equipe apaziguou os ânimos.

A dinâmica da atividade se manteve nas semanas seguintes e, no meados do mês de junho, Charles ao perceber que o conto selecionado era curto e que ainda havia tempo para atividade, pediu para contar uma história. Desta vez ele não era a única criança presente, mas isso não o intimidou.

Era uma vez o “Efalante”, ele era um elefante que falava. Tinha apenas oito anos e tinha muito medo de tudo, pois todo mundo falava para ele que os “outros” faziam muito mal, mas no fim ele acaba percebendo que ele pode fazer amizade, com os “outros” que são da turma do Ursinho Puff.

É inevitável fazer uma comparação entre o Efalante e o próprio Charles, principalmente no contexto em que ele, Charles, não se relacionava com outras pessoas, pois, segundo sua mãe, os outros faziam muito mal. Charles só podia se relacionar com a própria mãe e com Deus.

Enquanto narrava à história, Charles desenhava os personagens de seu conto.

Após esse episódio ele ficou um mês sem retornar ao ambulatório. No dia de seu retorno repetiu seu movimento de querer toda atenção da equipe só para ele e mais uma vez pediu para contar uma história. Era um livro do Homem-Aranha, mas desta vez não conseguiu dar fim a ela. Combinamos então que ele terminaria em casa e traria quando estivesse pronto.

Uma semana depois voltou a querer atenção só para ele. Durante a atividade ficou tacando pedra no castelo e chamando meu nome. Depois me disse ter ficado chateado, pois sua mãe havia o deixado ali e tinha ido embora (ela havia ido ao hospital pegar remédios).

Outro episódio de briga, com o mesmo menino da vez anterior, ocorreu na semana seguinte. Desta vez Charles machucou o nariz. Curioso que o conto do dia era O Tapete Mágico, onde há três objetos mágicos (um tapete que leva a pessoa para qualquer lugar, uma maça que cura tudo e um binóculo que enxerga a qualquer distância). Pedimos para que cada um escolhesse um objeto. Charles escolheu a maça, disse que ia dar para mãe cheirar e assim ela não tomaria mais remédios.

Três encontros depois Charles trouxe o livro do Homem-Aranha finalizado e fez questão de mostrá-lo só para mim. Parecia estar muito orgulhoso de sua história e aliviado também.

O desenvolvimento clínico

Charles chegou ao ambulatório trazido por sua mãe. Esta estava assustada com o comportamento agressivo do filho. Importante lembrar que por ter contraído o soro HIV+ em uma relação onde se julgou enganada, pois não sabia que seu par era portador, ela se afasta de seu meio social e apresenta o mundo, para o menino, como um lugar de pessoas maléficas e desonestas.

Segundo minha experiência, parece-me que a mãe sempre está ativamente presente na origem da perturbação, particularmente em neuroses infantis ou naquela cuja etiologia recua até a primeira infância. Em todo caso, é a esfera instintiva da criança que se encontra perturbada, constelando assim arquétipos que se interpõem entre a criança e a mãe como elemento estranho, muitas vezes causando angústias[10].

No caso de Charles, sua mãe utilizava sempre da bíblia e seus personagens, como únicos objetos dignos de relação. O mundo então construído era composto apenas por ela, Charles e pelos elementos bíblicos.

A criança é o deus companheiro da Grande Mãe. Como criança e como Cabir, ela se situa ao lado e debaixo dela como criatura dependente. Mesmo para o deus jovem, a Grande Mãe é o destino. Quanto mais para a criança, cuja natureza é pertencer à mãe e ser parte dependente da vida dela![11]

Nos quatro primeiros encontros narrados acima é visível o desejo em Charles de poder criar a sua própria história, a sua própria forma de se relacionar com o mundo e “cortar o cordão umbilical” com sua mãe. Mas para isso a equipe deveria estar atenta, não só em suas atitudes, mas também nas escolhas dos contos.

Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e despertar a sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações, reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam.[12]

Foi no quinto encontro, quando Charles era única criança presente, que vimos à oportunidade para que ele enfim pudesse contar um pouco da sua história.

A ação, na verdade, se desdobra em duas dimensões fundamentais na relação do sujeito consigo próprio e com o mundo: a estabilidade e a precariedade, ou seja, preservação e a mudança. Ela se expressa dinamicamente, portanto, na tensão entre o hábito e a criação, entre ações que garantem a estabilidade das imagens de si e do mundo, preservando certas referências identitárias, e atos criativos ou inovadores, que criam novas maneiras de o sujeito se ver e se descrever no mundo – instituindo, assim, novas formas de agir como sujeito frente às expectativas sociais que o cercam, e frente ao seu próprio desejo[13].

São inúmeras as correlações que podemos fazer entre a história vivida por Charles e a história por ele contada: Data de aniversário, a criança que não tem amigo, o nome do barco onde ele se encontra e tantas outras. Há também algumas correlações que podemos fazer entre a história contada e a atividade dos contos. De imediato destaco duas: o nome de um dos integrantes é o mesmo nome da criança de 39 da história e a frase “basta eu imaginar que tudo acontece” era a forma que respondíamos à frequente pergunta que as crianças faziam durante os contos: mas isso existe mesmo?

A sua rejeição em participar da atividade em algumas semanas, as repentinas brigas que teve com o colega e o medo que sentiu no dia que sua mãe se ausentou são facilmente entendida quando comparamos com as analises encontradas no livro de Erich Neumann: A História da Origem da Consciência (1968), por exemplo, na página 48 ele diz:

A criança também experimenta essa mesma indefinibilidade do mundo; ela ainda não é capaz de se orientar com consciência e de reconhecer o mundo e enfrenta cada evento como se fosse uma devastadora inovação, estando exposta a todos os caprichos do mundo e dos homens (…) Esse terror é expressão da situação presente na alvorada do mundo, onde uma pequena e frágil consciência do ego se vê diante do gigantesco mundo (…) Por isso, o medo é um fenômeno normal na psicologia da criança.

Essa indefinibilidade e a, ainda, frágil consciência do ego citada por Neumann também encontramos na terceira história contada por Charles. Esta já na presença de outras crianças. Onde o personagem principal, novamente com traços similares ao próprio narrador é um elefante falante. Ou seja, meio homem, meio animal.

A figura do animal indica que os conteúdos e funções em questão ainda se encontram na esfera extra-humana, isto é, num plano da consciência humana participando consequentemente, por um lado, do sobre-humano demoníaco e, por outro, do infra-humano animal.[14]

Seguindo Winnicott, acreditamos que nossa investida quanto à possibilidade de Charles poder fantasiar e construir sua própria história estava correta.

A solução para os problemas da ambivalência inerente surge através da elaboração imaginativa de todas as funções; sem a fantasia as expressões de apetite, sexualidade e ódio em sua forma bruta seriam a regra. A fantasia prova, deste modo, ser a característica do humano a matéria-prima da socialização e da própria civilização.[15]

Para acolher Charles nessa nova construção de mundo nos apoiamos principalmente nas novas relações que eram criadas através dos encontros semanais, não só com os membros da equipe, mas também com as outras crianças. Isto nos pareceu surtir efeito quando ele contou a história do Efalante e seu encontro com a turma do Ursinho Puff.

Quando ações realizadas pelo sujeito são bem sucedidas no sentido de serem acolhidas pelo ambiente e legitimadas por ele, elas tendem a se tornar hábitos subjetivos, ou seja, são incorporados aos padrões e esquemas de ações que se tornam “naturais”, que não mais suscitam interrogações.[16]

Mas Winnicott nos alerta que não se trata de um basta querer

Para funcionar como terapia (…) a criança precisa ganhar confiança no novo ambiente, em suas estabilidades e em sua capacidade de objetividade antes de se desfazer de suas defesas – defesas contra uma ansiedade intolerável, que poderia ser novamente desencadeada por uma nova privação.[17]

Desta forma, com um ambiente acolhedor e “encorajador”, através de seu contato com o mundo arquetípico dos contos de fada e uma possibilidade de novos relacionamentos, Charles conseguiu elaborar e contar a sua história. Uma história que ganhou até livro, personificado no papel de Homem-Aranha, uma história que ecoa aqui neste trabalho.

Por meio do ato heróico da criação do mundo e de divisão entre os opostos, (…) Com o surgimento do ego, a situação paradisíaca é abolida; a situação infantil, na qual algo maior e mais amplo ordenava a vida e a dependência com relação a ele era natural, terminou.[18]

Por fim, quero dizer que nesse trabalho não há um movimento de culpar a mãe quanto os comportamentos agressivos e inquietação psicomotora apresentada por Charles. Na verdade se não fosse pela própria mãe, Charles não seria atendido no ambulatório. O que tento descrever é como o trauma dessa mãe se codificou na forma de amar o seu filho, sem esquecer que esse filho é um dos dois frutos do encontro com o pai de Charles. O filho e a Aids.

O amor não é só uma questão de contato afetivo. O amor reúne em si os impulsos instintivos de raiz biológica, e o relacionamento que se desenvolve entre um bebê e uma mãe carrega consigo idéias de destruição. É impossível amar de modo livre e pleno sem ter idéia destrutiva[19].

O investimento de sua mãe e a importância desse investimento pode ser percebido no fato que ela sempre participou da Tenda da Cidadania, citada no início desse trabalho, além de seu esforço descomunal de levar Charles ao ambulatório. Por causa dela e de seus esforços o trabalho com Charles pode ser realizado.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

BETTELHEIM, B. (2003) A Psicanálise dos Contos de Fadas. São Paulo: Paz e Terra

Bezerra Jr., B. & Milman, L. (2008) A Casa da Árvore – uma experiência inovadora na atenção à infância. Rio de Janeiro: Garamond Ltda.

Bonaventure, J. (2008) O que Conta o Conto? São Paulo: PAULUS.

Fordham, M. (1994) A Criança Como Indivíduo. São Paulo: CULTRIX

Jung, C.G (2000) Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Editora Vozes

Neumann, E. (1968) História da Origem da Consciência. São Paulo: Cultrix.

PIERI, R de V. (2005) O Conto de Fada da Casa das Palmeiras. Trabalho de conclusão de curso de graduação em psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Sarmento, M. J. & Vasconcellos, V. M. R. de (2007) Infância (In)Visível. Araraquara: Junqueira & Marin Editores

Winnicott, D. W. (1990) Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago Editora.

Winnicott, D. W. (2005) A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: Martins Fontes.


[1] Winnicott. D. W (2005) pág. 88

[2] Vasconcellos. Vera Maria de & Sarmento. Manuel Jacinto (2007) pág. 8.

[3] Milman. Lulli & Bezzera Jr. Benilton (2008) pág. 21.

[4] Neumann. Erich (1968) pág. 19.

[5] Bonaventure. Jette (2008) pág. 12

[6] Jung, Carl Gustav (2000) pág. 17

[7] Milman. Lulli & Bezzera Jr. Benilton (2008) pág. 22.

[8] Pieri, de Vasconcellos Rodrigo (2005) pág. 13

[9] Bettelheim Bruno (2003) pág 75

[10] Jung, Carl Gustav (2000) pág. 94

[11] Neumann, Erich (1968) pág. 50

[12] Bettelheim, Bruno (2003) pág. 13

[13] Milman. Lulli & Bezzera Jr. Benilton (2008) pág. 22

[14] Jung, Carl Gustav (2000) pág. 226

[15] Winnicott, D, W (1990) pág. 78

[16] Milman. Lulli & Bezzera Jr. Benilton (2008) pág. 23

[17] Winnicott, D, W (2005) pág. 199

[18] Neumann, Erich (1968) pág. 94

[19] Winnicott, D, W (2005) pág. 87

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Empoderamento: Transferência e o resgate da auto-estima

Empoderamento: Transferência e o resgate da auto-estima

Por: Wagner de Menezes Vaz

Resumo. Nosso objetivo é o estudo do fenômeno da transferência como meio para o resgate da auto-estima e do poder pessoal. Quando nos referimos a um sujeito destituído de poder estamos dizendo que ele é possuidor de uma ferida narcísica que o faz lançar mão de estratégias que minimizem seu sofrimento. O conceito de self-regulating other, utilizado por Mario Jacoby, traz como hipótese o fato de que é na relação com o outro que é possível à criança a emergência da organização do senso de Self. As experiências com as figuras parentais, em particular a figura materna, se cristalizam em representações psíquicas sob as formas de sentimentos, expectativas, idéias e fantasias que, ao serem internalizadas, assumem um caráter geral, tornam-se vivas e passam a fazer parte da história do indivíduo. É neste sentido que podemos conceber a transferência como uma estratégia para a construção de um estado de empoderamento do paciente, como demonstra Jung, através da noção da função prospectiva dos símbolos que apontam uma saída criativa para a neurose. Esta construção do empoderamento, na atmosfera “erótica” do encontro analítico é uma etapa preliminar e imprescindível do processo de individuação. Neste encontro, o vínculo entre analista e paciente, entendidos como dois sistemas psíquicos em interação, atualiza estas vivências familiares, permitindo sua re-elaboração e reconstrução. A família, núcleo básico humano, representa o cenário no qual a auto-estima é construída. Temos a necessidade de nos ver refletidos no outro para podermos nos reconhecer, sentirmo-nos aceitos e importantes para outras pessoas e para nós mesmos. O analista, enquanto figura de poder, representa o sábio na imagética do analisando e, portanto, de grande apelo emocional, o que favorece a manifestação dos conteúdos anímicos em um ambiente de troca afetiva e acolhimento.

O ser humano se encontra em estado de equilíbrio quando suas necessidades físicas, mentais e espirituais são minimamente atendidas de forma que a adaptação ao meio se torne a melhor possível.  No entanto, não basta comer bem e estar abrigado das intempéries. Nosso ser demanda por algo que passa pelo olhar do outro.

Quando chegamos ao mundo, como numa casa que visitamos pela primeira vez, esperamos ser bem recebidos. Antes de vir, outros estavam antes de nós. Sermos brindados com a hospitalidade nos faz sentir bem e acolhidos. Quando isto ocorre, somos objeto de apreço e merecedores de atenção e respeito aos olhos de outras pessoas.

Um cliente quando vai ao consultório traz suas experiências mais íntimas e seus medos mais profundos. Portanto, é natural que, na primeira vez, suas reações sejam de desconforto. Fazer com que o paciente fique o mais a vontade possível é uma estratégia importante. O ambiente deve ser acolhedor e o terapeuta deve abster-se de quaisquer intervenções que caracterizem críticas ou julgamentos. É importante fazê-lo perceber que suas emoções iniciais de desconforto e ansiedade são perfeitamente compreensíveis; afinal, o paciente está diante de uma pessoa com quem nunca travou contato antes e, agora, está ali, na condição de falar sobre seus segredos.

A primeira vista pode parecer um contra-senso falar de empoderamento do paciente. O médico, o terapeuta ou psicólogo, pela particularidade da posição que ocupam, de serem conhecedores do corpo e da alma do homem, se encontram numa relação do poder no mínimo desigual. Os profissionais da área médica ou psicológica conhecem aquilo que é mais caro ao ser humano: a saúde física e a saúde mental. De posse deste saber, estes profissionais detêm o poder nesta relação.

Mas em que momento esta equação se inverte?

Empoderar significa não somente assumir o poder em virtude de uma determinada circunstância, mas, também a partir da idéia de que alguém ou um estatuto delegou este poder. Não há empoderamento sem o avanço de uma parte e a aquiescência de outra parte. Existe a idéia de que esta assimetria entre paciente e terapeuta poderia ser reduzida em função da disponibilidade de informação, ou seja, a partir do momento que consideramos que a tecnologia de acesso a informação permite às pessoas obterem conhecimento sobre qualquer tema, é possível que se diminua o gap existente entre estes dois atores. No entanto, tal argumento, verdadeiro por um lado, deixa de considerar a imagética que permeia todas as relações, sejam elas profissionais ou afetivas. O empoderamento não se estabelece unicamente pelo conhecimento técnico que o paciente pode adquirir, mas pelo conhecimento e pela autoridade que ele acha que o médico possui. Implicitamente ele outorga este poder ao terapeuta.

O paciente ao buscar o terapeuta espera uma atitude de acolhimento. A busca pelo atendimento clínico aponta para um desempoderamento do paciente, pois é este o motivo de sua busca. Chamamos a atenção para o preparo do terapeuta quanto à disponibilidade para a escuta, a abertura para novos significados que a clinica traz. Na verdade, é este desafio que a clínica propõe: o da escuta dos sentidos e significados do paciente. Mesmo que o trabalho do psicólogo não esteja associado ao do médico enquanto prática, é por ele atravessado enquanto paradigma. Com o avanço da tecnologia e da eficiência dos fármacos, a prática médica olha o seu paciente como um quadro nosológico e não como um sujeito que provem de uma dinâmica que possui múltiplos atravessamentos.

Na atuação profissional do psicólogo estes atravessamentos são assimilados de forma diferenciada. Podemos ter muito pontos de contato, mas, isto não significa uniformidade. A padronização das intervenções e a não abertura para outros significados a partir de significantes comuns acaba por excluir do sujeito aquilo que o diferencia dos demais: a sua singularidade.

O setting terapêutico é um microcosmo das relações humanas mais amplas. Se o terapeuta é, ao mesmo tempo, quem o analisando deposita confiança para a escuta de sua queixa e que tem a convicção de que ele pode oferecer as respostas, fica em suspenso de que modo se dá o amálgama entre um e outro já que eles não se conhecem. Cabe, então, questionar neste momento, a partir de que evento é possível identificar a instalação de uma relação analítica. O fenômeno da transferência merece neste ponto uma atenção especial para o estudo de como ela está relacionada ao empoderamento e ao resgate da auto-estima.

Antes de tudo, a transferência é um fenômeno que ocorre entre duas pessoas e de forma inconsciente, automática e espontânea. Como um fenômeno projetivo, atribuímos características objetivas a alguém, mas que, na verdade, pertencem aos conteúdos subjetivos do projetor. Este fenômeno captura emocionalmente o eu de tal forma que este não é capaz de, pela força de vontade, opor-lhe resistência. Na técnica analítica de Jung, o terapeuta acata as emoções do paciente e, por este motivo, está frente a frente com ele, servindo-lhe de espelho. Para Jung (2004) é um engano supor que o terapeuta não sofre as influências das emoções emanadas de seus analisandos. E estas emoções serão tanto mais fortes quando os conteúdos projetados do paciente forem coincidentes com os conteúdos inconscientes do terapeuta. Este fenômeno é chamado de contratransferência. Portanto, a intensidade da transferência se dará proporcionalmente a importância de seus conteúdos para o sujeito. Tão logo se conscientize dos seus elementos, haverá uma disponibilidade energética em igual grau. O que é importante é perceber que a energia investida na relação transferencial poderá ser utilizada para o que representa um valor para o sujeito, mas, que não estava consciente até então. Jung (2004) vai se referenciar à importância de um bom rapport, ou seja, uma empatia positiva entre analista e analisando para que haja de fato um encontro analítico e seu efeito terapêutico seja possível.

Quando a transferência se instala é exigido do terapeuta que não se apresse em dizer coisas ao paciente de forma que ele se conscientize intelectualmente do que ocorre, pois, além de aumentar a suas estratégias defensivas é inócuo terapeuticamente falando. Portanto, o analista deve ser hábil no manejo da transferência.

Um dado importante é o preparo do analisando para fazer frente a estas fortes vivências emocionais que também afetam o analista e será tanto mais danosa quanto for sua inconsciência a respeito do que ocorre. Havendo uma brecha há sérios riscos de que o analista se contamine com as imagens do analisando e interfira no trabalho analítico.

A transferência ocorre a partir de um conteúdo ativado no inconsciente e que busca de alguma forma se expressar. Sua importância é equivalente ao conteúdo projetado. Os conteúdos projetados na transferência, levando-se em conta a intensidade, representam algo de grande valor para o paciente. Jung irá propor que

[…] deve-se devolver o valor ao paciente e a análise não termina até que o paciente tenha integrado completamente o valor à sua personalidade. Assim se for projetado o complexo de salvador […] devolva essa qualidade ao paciente sem modificá-la em nada. Que salvador signifique lá o que for, isto não quer dizer que tal qualidade seja a do analista. (JUNG, 2003, p.142)

É, portanto, uma tentação para o analista sucumbir a estes apelos, a identificação com o arquétipo, mas com certeza pode estar comprometendo o valor terapêutico do encontro analítico.

O valor terapêutico da transferência não reside no fenômeno em si, mas, nas imagens que ela porta. O empoderamento através da via transferencial se dá pelas imagens subjacentes ao fenômeno. Segundo Jung

[…] o paciente deverá ver o valor subjetivo dessas imagens que parecem criar empecilhos à sua vida. Deve assimilá-las à sua própria psicologia e descobrir de que forma elas fazem parte dele próprio; de que forma, por exemplo, ele dá valor positivo a um objeto quando, na verdade, o valor deveria ser incorporado e desenvolvido pelo paciente. E da mesma forma quando projeta um valor negativo, odiando e execrando o objeto, sem descobrir que vê nele o seu próprio lado negativo, sua sombra por preferir ter uma opinião otimista e unilateral de si mesmo. (JUNG, 2003, p.149)

Este empoderamento de que estamos falando diz respeito na verdade ao chamar o paciente à responsabilidade e ao reconhecimento de seus aspectos bons e maus, pois somente através da recolha das projeções e sua assimilação pode o indivíduo estar no poder, estar entronizado no lugar que lhe é de direito ao abolir as unilateralidades neuróticas às quais de se afeiçoou. Jung (2004) descreve a psique como auto-reguladora e que faz uso da compensação como um mecanismo de ajuste. Olhar para o sintoma é observar a resposta que este sistema está produzindo em função de desequilíbrios no mesmo.

O analisando no setting aparece como portador de uma ferida e que fantasia que o terapeuta possa retirar esta dor. Ele poderá aderir ao terapeuta através da empatia, estratégia esta que visa obter o apoio a sua causa partindo do pressuposto de que ao estabelecer um bom relacionamento com o terapeuta este trará a solução de seus problemas. No entanto, Steinberg explica que

Jung, indubitavelmente, queria dizer que a tentativa do paciente de curar-se através da empatia é válida, desde que o paciente se identifique com a atitude analítica, isto é, com a intenção do analista de tornar consciente o inconsciente. (STEINBERG, 1990, p.14)

A tentativa do analisando de se curar através de uma fantasia que faz a respeito do analista se mostra uma falácia. Isto demonstra como no setting são reproduzidas as estratégias que o analisando usa para entrar em relação com as pessoas, ou seja, é neste vaso alquímico que analista e analisando tomam conhecimento de como se dão os relacionamentos que o último estabelece fora da clínica. Mesmo que o analisando procure estabelecer conscientemente uma relação cordial e harmônica com o terapeuta, inconscientemente constelará os conteúdos associados e, transferencialmente, capturará a figura do terapeuta e o transformará numa figura significativa de seus relacionamentos infantis. Como o terapeuta não é nenhuma destas figuras projetadas ele pode fazer uma intervenção e pontuar sobre a possibilidade de uma nova dinâmica.

O analisando tende a repetir os padrões de comportamento. Ele tem ciência de que existe um mal estar nesta conduta, mas, não consegue fazer nenhuma oposição a isto. Mesmo que o sofrimento lhe seja evidente, existe um ganho subjacente que lhe é desconhecido. Não basta que o paciente conheça intelectualmente as razões pelas quais ele conduz sua vida desta ou daquela maneira. Este rol de justificativas apenas o aprisionará cada vez mais como numa areia movediça. Paradoxalmente, para que o analisando se empodere é importante que ele se desempodere, que deixe de reificar as condições que lhe dão sustentação no momento atual e que o afastam de si mesmo. A análise redutiva, o movimento em direção às causas que permeiam suas atitudes atuais pode ser um começo importante, mas, não é o suficiente. Mostra-se mandatório que, antes, deve haver uma mudança nas atitudes.

Para que o encontro analítico tenha valor terapêutico é necessário uma atitude de acolhimento por parte do analista, mas, é importante, também,  observar que este acolhimento é muito mais do que uma empatia ou afetividade. O olhar clínico deve ser arguto o suficiente para captar as necessidades da alma do analisando.

Jung (2004), esquematicamente, define as quatro fases que compõem o processo analítico: confissão, elucidação, educação e transformação.

Toda psicologia é uma confissão e não uma descrição de fatos. A confissão é uma apresentação do sujeito, um esvaziamento das informações que se encontram na consciência; pelo menos no começo, o paciente irá falar muito, já que nada conhecemos a respeito dele; quando ele fala algo para este alguém, que é o terapeuta o qual transferencialmente é visto como superior, sabemos que é algo importante que está sendo falado.

A elucidação diz respeito à percepção de que, por detrás da fala do paciente, existe um outro discurso, passível de interpretação. A informação inconsciente nunca é totalmente inconsciente; o inconsciente irá procurar uma maneira de deixar uma pista; ele está sempre querendo aparecer; ele rompe as barreiras que o ego estabelece; as falhas que se apresentam apontam para o sintoma neurótico, ou seja, a recusa do ego em conhecer-se; ele cria uma cisão na personalidade, pois, não encontra uma forma de se expressar diretamente; ele o fará de forma indireta.

A educação é o entendimento de que vivemos em sociedade, que o homem é um ser social; e que as transformações necessárias só irão ocorrer na realidade. A sociedade possui leis que estão acima do sujeito; a educação é o reconhecimento dessas regras; para mudar algo, eu tenho que participar da sociedade.

A transformação é dirigida para quem já está adaptado; nesta etapa surge um olhar crítico sobre a adaptação enquanto movimento prospectivo do psiquismo. A categoria “normalidade” é uma categoria mediana; diz respeito à norma, uma definição coletiva e social; mas deseja-se mais; existe uma necessidade de uma resposta individual que corresponde à individuação; leva-se em consideração a norma, mas, não se submete a ela; muitas vezes existem soluções que vão de encontro à norma e são assumidos as escolhas e os riscos; é aqui que o método dialético deve ser levado mais sério ainda quando o analista abre mão de seus pressupostos. A proposta de restituição de poder via transferência passa pela atitude do analista em estar aberto à diferença. A este respeito, Jung diz que

as exigências e necessidades do homem não são iguais para todo mundo. O que para uns é a salvação, para outros é prisão. O mesmo acontece com a normalidade e o ajustamento. Há um preceito biológico que diz que o homem é um ser gregário e, portanto, só atinge a saúde plena enquanto ser social. No entanto, é possível que o primeiro caso que encontramos pela frente desminta frontalmente essa assertiva, provando-nos que ele só gozará de saúde plenamente, se levar uma vida anormal e anti-social. (JUNG, 2004, p. 67-68)

Esta fase do processo analítico lança um olhar sobre as necessidades da alma, sobre a necessidade de uma resposta individual ao que se apresenta, para além do ajuste e da adaptação. É uma etapa em que o analista é co-participante. Transformar é ir além da forma, do que já está estruturado e conhecido. Sobre este aspecto, Jung constata que

é de desesperar que na psicologia verdadeira não existam normas ou preceitos universais. O que existe são apenas casos individuais e suas necessidades e suas exigências são as mais variadas possíveis – tão divergentes, que no fundo nunca se pode saber de antemão o rumo que vai tomar este ou aquele caso. O melhor que o médico pode fazer é renunciar a qualquer opinião preconcebida. (JUNG, 2004, p.68)

O empoderamento é entendido como a resultante de uma relação que se dá através da transferência-contra-transferência. A conscientização dos mecanismos neuróticos num primeiro momento e a possibilidade de construção de uma oportunidade de ser quem se é através de uma escolha consciente, num segundo momento. O encontro analítico, segundo Jung, “[…] é como uma mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam.” (JUNG, 2004, p. 68). Neste ponto, Jung assegura que

nenhum artifício evitará que o tratamento seja o produto de uma interação entre o paciente e o médico, como seres inteiros. O tratamento propicia o encontro de duas realidades irracionais, isto é, duas pessoas que não são grandezas limitadas e definíveis, mas que trazem consigo, não só uma consciência, que talvez possa ser definida, mas, além dela, uma extensa e imprecisa esfera de inconsciência. Esta é a razão por que muitas vezes a personalidade do médico (como também a do paciente), é infinitamente mais importante para um tratamento psíquico do que aquilo que o médico diz ou pensa, ainda que isso não possa ser menosprezado como fator de perturbação ou de cura. (JUNG, 2004, p.68)

A construção da auto-estima acontece desde cedo na vida das pessoas e está ligada ao auto-conceito, ao julgamento que cada um faz a respeito de si próprio. Ela afeta diretamente os sentimentos e a maneira como a pessoa se comporta diante das situações da vida, principalmente aquelas relacionadas ao meio social e, por conseguinte, as que têm a ver com o olhar do outro. A baixa auto-estima está ligada principalmente a uma percepção equivocada de si o que leva a um sentimento de inadequação.

Um ego estruturado passa pela questão da auto-estima. Desde a infância quando o olhar materno encanta com seu brilho indicando aceitação e acolhimento. Ao que parece, a natureza nos brinda com exemplos interessantes acerca da necessidade de nos vermos um nos outros. O exemplo clássico é o nascimento dos patos que ao quebrarem a casca do ovo, instintivamente buscam sua mãe. Esta lhe servirá de reflexo e lhe garantirá a sobrevivência, pois, onde ela for o patinho a seguirá. Jacoby (1984) faz referência ao conceito de ressonância empática acerca do qual ele diz que

todos nós precisamos nos refletir para podermos nos reconhecer, e necessitamos de ressonância empática para nos sentirmos reais, aceitos e, conseqüentemente, importantes para outras pessoas e, por sua vez, para nós mesmos.(JACOBY, 1984, p.48)

Ao que parece, a confiança básica que nos sustentará pelos anos a frente parte do olhar acolhedor de quem cuida de nós na primeira infância, em especial a mãe e com o qual de identifica e percebe como parte de si mesma. Jacoby (2004) vai falar do “brilho no olho da mãe” que representa o primeiro reflexo que o bebê tem de si mesmo a partir da resposta da mãe à sua existência. A este respeito, o conceito de transferência especular se caracteriza pela necessidade de nos refletir em outro para que possamos nos sentir reais e nos reconhecer. Quando existe algum dano neste processo, é bem provável que o indivíduo manifeste uma falta de confiança básica que comprometa sua auto-estima. São pessoas que desenvolvem uma sensibilidade intensa à rejeição, podendo supercompensar com atitudes de autosuficiência e onipotência, sentimentos estes que Kohut irá associar ao “eu grandioso” e, portanto, a necessidade do encontro analítico pode estar associada ao abalo desta estratégia.

A atitude do terapeuta frente a transferência especular aponta para uma atitude de acolhimento, de compreensão e apreço, num primeiro momento. No transcurso do trabalho analítico o analista deve observar a ocasião em que seja importante sinalizar os equívocos da estratégia do paciente, em especial a partir dos sonhos que ele traz. Mas enquanto isto não ocorre, o papel do analista será o de refletir como num espelho as expectativas do paciente que enxerga o analista como parte do seu próprio eu, ou seja, a ressonância empática deverá ser constante. As intervenções do analista procurarão gradativamente reduzir a “[…] dependência no reflexo externo através de um sentimento ampliado de amor-próprio e, conseqüentemente, também de uma sensação aumentada de autonomia pessoal.” (JACOBY, 1984, p.54).

O analisando fantasia que o terapeuta pode aliviar seu sofrimento psíquico; no entanto, no decorrer dos diversos encontros o analisando percebe que os resultados obtidos derivam de seu esforço consciente assim como dos recursos do Self, que age no sentido colaborar com o desenvolvimento psíquico.

Quando tematizamos a questão da auto-estima, entendemos a transferência como um fenômeno importante na medida em que o analisando tende a reproduzir a sua relação com as imagos parentais na figura do analista, em particular a figura materna com a qual construiu seus primeiros vínculos. A percepção que o paciente tem do analista vai sendo modificada em função do complexo que está ativado na ocasião e, por conseguinte, a disponibilidade do analista é essencial. Esta abertura do analista para uma relação empática e sensível à psique do paciente encontra eco na afirmação de que

influir é sinônimo de ser afetado. De nada adianta ao médico esquivar-se à influência do paciente e envolver-se num halo de profissionalismo e autoridade paternais. Assim, ele apenas se priva de usar um dos órgãos cognitivos mais essenciais de que dispõe. (JUNG, 2004, p.68)

Isto é, os próprios sentimentos do analista podem oferecer possíveis interpretações sobre os processos inconscientes do paciente.

Quando existem danos a auto-estima do analisando, este demonstra sentimentos de vergonha e de desempoderamento. E para que o encontro analítico seja terapêutico é importante conquistar a confiança do analisando sendo sensível aos sentimentos da criança ferida. Mais uma vez, ressaltamos o papel do analista para esta finalidade ao considerarmos que

[…] o médico também “está em análise”, tanto quanto o paciente. Ele é parte integrante do processo psíquico do tratamento, tanto quanto este último, razão por que também está exposto às influências transformadoras. Na medida em que o médico se fecha a esta influência, ele também perde sua influência sobre o paciente. E, na medida em que essa influência é apenas inconsciente, abre-se uma lacuna em seu campo de consciência, que o impedirá de ver o paciente corretamente. Em ambos os casos, o resultado do tratamento está comprometido. (JUNG, 2004, p.69)

O acolhimento do terapeuta às feridas do paciente permite que os sentimentos de vergonha sejam gradativamente eliminados e que o paciente, então, entre em contato com estes conteúdos sombrios da infância e que novos padrões possam ser criativamente construídos a partir de uma nova compreensão. Tais transformações não ocorrem por um ato de vontade, mas são conduzidas pelo próprio Self. A tarefa do analista é ser um instrumento facilitador para que o processo psíquico possa ocorrer rumo à individuação.

Palavras-chaves. Poder. transferência, individuação, sombra, inconsciente.

REFERÊNCIAS

Jung, C.G. (2004) A Prática da Psicoterapia. Petropolis: Vozes.

Steinberg, W. (1990) Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana. São Paulo: Cultrix.

Jung, C.G. (2003) Fundamentos de Psicologia Analítica. Petrópolis: Vozes.

Jacoby, M. (1984) O Encontro Analítico. São Paulo: Cultrix.

Jacoby, M. (1994) Shame and the Origins of Self-esteem. London: Ed.Routledge.

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